“Para combater a tortura, é preciso combater
a privação de liberdade", diz perita
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.12
BOLETIM INFORMATIVO N.12
A prática da tortura e a privação de liberdade mantêm uma relação estreita, não sendo possível combater as violações sem repensar a lógica do encarceramento. Foi esta a mensagem central da aula de Catarina Pedroso, psicóloga que atuou como perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) entre os anos de 2015 e 2017.
Criado pela lei 12.847 de 2013 e em funcionamento desde 2015, o órgão, vinculado ao Governo Federal, é composto por onze peritos que possuem a atribuição de visitar qualquer espaço de privação de liberdade, público ou privado.
“A falta de transparência do sistema penitenciário favorece as violações e a tortura”, explica Catarina. “O Mecanismo tem a prerrogativa de entrar em qualquer instituição de privação de liberdade a qualquer momento. Isso permite que ele entre onde as outras instituições não estão entrando”.
Criado pela lei 12.847 de 2013 e em funcionamento desde 2015, o órgão, vinculado ao Governo Federal, é composto por onze peritos que possuem a atribuição de visitar qualquer espaço de privação de liberdade, público ou privado.
“A falta de transparência do sistema penitenciário favorece as violações e a tortura”, explica Catarina. “O Mecanismo tem a prerrogativa de entrar em qualquer instituição de privação de liberdade a qualquer momento. Isso permite que ele entre onde as outras instituições não estão entrando”.
Segundo a perita, um amplo debate iniciado nos anos 1970 sobre como prevenir a tortura concluiu pela importância do monitoramento e das visitas frequentes a locais de privação de liberdade.
“Esse é o princípio básico deste tipo de mecanismo”, conta. “É um mandato bastante amplo, que permite que os mecanismos visitem não apenas unidades prisionais, mas também unidades socioeducativas, delegacias, instituições de acolhimento para crianças e adolescentes, hospital psiquiátricos, comunidades terapêuticas, instituições de longa permanência para pessoa idosa etc”. |
Assista aqui à aula de Catarina Pedroso sobre a experiência do MNPCT.
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Recentemente, o governo do Estado de Santa Catarina rejeitou as demandas de instalação de um Mecanismo estadual, alegando que já existem órgãos responsáveis por este tipo fiscalização, tais como o Ministério Público e o poder Judiciário. Para a perita, contudo, esse argumento não se sustenta.
“De fato, se os órgãos responsáveis, se promotores e juízes estivessem presentes nas unidades, talvez órgãos como o mecanismo fossem muito menos necessários. Mas eles não se fazem presentes”. Nas poucas visitas que fazem, segundo Pedroso, os representantes destes órgãos não costumam ter “uma aproximação cuidadosa” com os presos, o que impossibilita as denúncias de violação.
“É muito comum que esses órgãos façam visitas acompanhados da direção da unidade. E aí é claro que as pessoas não falam o que acontece”. Este cuidado na construção de uma relação de confiança e sigilo com os presos é, para Catarina, um dos grandes diferenciais da metodologia construída pelo Mecanismo.
“Uma coisa que nós ouvíamos com muita frequência na visita era: ‘nossa, ninguém nunca conversou comigo desse jeito, ninguém nunca sentou aqui dentro da cela para conversar’”.
“De fato, se os órgãos responsáveis, se promotores e juízes estivessem presentes nas unidades, talvez órgãos como o mecanismo fossem muito menos necessários. Mas eles não se fazem presentes”. Nas poucas visitas que fazem, segundo Pedroso, os representantes destes órgãos não costumam ter “uma aproximação cuidadosa” com os presos, o que impossibilita as denúncias de violação.
“É muito comum que esses órgãos façam visitas acompanhados da direção da unidade. E aí é claro que as pessoas não falam o que acontece”. Este cuidado na construção de uma relação de confiança e sigilo com os presos é, para Catarina, um dos grandes diferenciais da metodologia construída pelo Mecanismo.
“Uma coisa que nós ouvíamos com muita frequência na visita era: ‘nossa, ninguém nunca conversou comigo desse jeito, ninguém nunca sentou aqui dentro da cela para conversar’”.
TRAGÉDIA ANUNCIADA
Em dezembro de 2015, Catarina e outras três peritas visitaram quatro unidades prisionais do Amazonas e produziram um relatório no qual alertavam para o risco iminente de rebeliões e assassinatos de detentos, a crescente tensão entre facções rivais e as péssimas condições dos presídios.
Em janeiro deste ano, ao menos 64 presos foram mortos durante rebeliões nas prisões amazonenses, 56 deles só no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), no segundo maior massacre da história do sistema penitenciário brasileiro depois de Carandiru.
“O relatório do Mecanismo apontou que poderia ocorrer exatamente o que aconteceu um ano depois”, conta Pedroso. “A situação da unidade era de muito tensionamento, existia uma população extremamente vulnerável. Não foi dada a devida importância ao relatório e, um ano depois, aconteceu aquilo”.
A perita destaca ainda que o principal palco do massacre foi uma unidade administrada por uma empresa privada, o que contradiz o discurso de eficiência dos defensores da privatização.
“Os serviços de lá não eram melhores do que em unidades geridas pelo poder público”, diz. “Por exemplo: pensa-se que pelo menos os serviços de saúde, jurídico e psicossocial são melhores quando uma empresa privada administra. Mas lá as pessoas em geral não eram atendidas, não havia profissionais suficientes e o atendimento, quando acontecia, era ruim”.
SOB CUSTÓDIA DO VIOLADOR
De acordo com a palestrante, como a tortura é uma prática sistemática e institucionalizada nas unidades de privação de liberdade em todo o país, pode-se dizer que os presos estão sob custódia dos seus próprios violadores.
“Aquele que deveria garantir os direitos é, ao invés disso, o violador. Isso é muito sofrido: você está sob custódia daqueles que te violam permanentemente”, diz a psicóloga, segundo quem as torturas ocorrem desde o momento da detenção até o fim da custódia no local de privação de liberdade.
“Os egressos do sistema prisional falam muito sobre essa sensação de viver sob constante ameaça. Isso produz marcas devastadoras. A privação de liberdade produz um tipo de sofrimento com o qual a pessoa vai lidar durante muito tempo”.
Em dezembro de 2015, Catarina e outras três peritas visitaram quatro unidades prisionais do Amazonas e produziram um relatório no qual alertavam para o risco iminente de rebeliões e assassinatos de detentos, a crescente tensão entre facções rivais e as péssimas condições dos presídios.
Em janeiro deste ano, ao menos 64 presos foram mortos durante rebeliões nas prisões amazonenses, 56 deles só no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), no segundo maior massacre da história do sistema penitenciário brasileiro depois de Carandiru.
“O relatório do Mecanismo apontou que poderia ocorrer exatamente o que aconteceu um ano depois”, conta Pedroso. “A situação da unidade era de muito tensionamento, existia uma população extremamente vulnerável. Não foi dada a devida importância ao relatório e, um ano depois, aconteceu aquilo”.
A perita destaca ainda que o principal palco do massacre foi uma unidade administrada por uma empresa privada, o que contradiz o discurso de eficiência dos defensores da privatização.
“Os serviços de lá não eram melhores do que em unidades geridas pelo poder público”, diz. “Por exemplo: pensa-se que pelo menos os serviços de saúde, jurídico e psicossocial são melhores quando uma empresa privada administra. Mas lá as pessoas em geral não eram atendidas, não havia profissionais suficientes e o atendimento, quando acontecia, era ruim”.
SOB CUSTÓDIA DO VIOLADOR
De acordo com a palestrante, como a tortura é uma prática sistemática e institucionalizada nas unidades de privação de liberdade em todo o país, pode-se dizer que os presos estão sob custódia dos seus próprios violadores.
“Aquele que deveria garantir os direitos é, ao invés disso, o violador. Isso é muito sofrido: você está sob custódia daqueles que te violam permanentemente”, diz a psicóloga, segundo quem as torturas ocorrem desde o momento da detenção até o fim da custódia no local de privação de liberdade.
“Os egressos do sistema prisional falam muito sobre essa sensação de viver sob constante ameaça. Isso produz marcas devastadoras. A privação de liberdade produz um tipo de sofrimento com o qual a pessoa vai lidar durante muito tempo”.
MAS O QUE É TORTURA?
Para além das agressões explícitas, a prática da tortura pode se dar por diversas outras maneiras: manutenção de um ambiente de insalubridade, superlotação, má alimentação e até pelo desrespeito à individualidade da pessoa presa. “As unidades promovem uma massificação e uma homogeinização. É muito comum as pessoas não terem roupa, não terem sapato”, conta Catarina, para quem a alimentação também é um elemento revelador desta lógica massificante. “As refeições costumam ser as mesmas, isso quando não são ruins, azedas, o que é bastante generalizado. Imaginem o que é comer sempre a mesma comida todos os dias por anos”, destaca. |
Presos sem sapatos: unidades promovem lógica massificante.
(Fonte: Relatórios do MNPCT) |
A palestrante trouxe aos alunos a definição de tortura desenvolvida pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 1989.
Nesta concepção, tortura é “todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim”.
A Convenção sustenta ainda que também deve ser entendida como tortura “a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”.
“Essa definição me parece muito interessante”, diz Catarina. “Há uma dimensão da tortura que é o da anulação da personalidade, dos desejos, dos planos de vida da pessoa internada”.
COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
A psicóloga dá como exemplo as chamadas Comunidades Terapêuticas, instituições privadas financiadas pelo poder público que recebem usuários abusivos de drogas.
“São instituições com características asilares, uma espécie de atualização do manicômio. Ficam em zonas rurais, afastadas, são fechadas, os familiares não podem visitar”, diz.
Catarina ressalta ainda como características constatadas pelo Mecanismo nas Comunidades Terapêuticas a ausência de profissionais técnicos, a precária articulação com a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e a frequente obrigatoriedade do exercício religioso.
“Esta também é uma forma de tortura, produzida a partir de um tratamento asilar, baseado no submetimento e na anulação da personalidade e dos desejos da pessoa internada”, afirma.
E dá um exemplo: “A perspectiva de internos de Comunidades Terapêuticas que visitamos era a pessoa virar obreira ou monitora da própria comunidade”, conta Pedroso. “É algo que retorna para si mesmo, não há nada que fortaleça os projetos de vida da pessoa”.
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE PARA QUEM?
A lógica punitivista e a privação de liberdade, conclui a palestrante, não só não resolvem os problemas que lhes cabem como criam outros ainda mais sérios. “Nós precisamos encontrar outras formas de fazer justiça”.
Nesta concepção, tortura é “todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim”.
A Convenção sustenta ainda que também deve ser entendida como tortura “a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”.
“Essa definição me parece muito interessante”, diz Catarina. “Há uma dimensão da tortura que é o da anulação da personalidade, dos desejos, dos planos de vida da pessoa internada”.
COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
A psicóloga dá como exemplo as chamadas Comunidades Terapêuticas, instituições privadas financiadas pelo poder público que recebem usuários abusivos de drogas.
“São instituições com características asilares, uma espécie de atualização do manicômio. Ficam em zonas rurais, afastadas, são fechadas, os familiares não podem visitar”, diz.
Catarina ressalta ainda como características constatadas pelo Mecanismo nas Comunidades Terapêuticas a ausência de profissionais técnicos, a precária articulação com a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e a frequente obrigatoriedade do exercício religioso.
“Esta também é uma forma de tortura, produzida a partir de um tratamento asilar, baseado no submetimento e na anulação da personalidade e dos desejos da pessoa internada”, afirma.
E dá um exemplo: “A perspectiva de internos de Comunidades Terapêuticas que visitamos era a pessoa virar obreira ou monitora da própria comunidade”, conta Pedroso. “É algo que retorna para si mesmo, não há nada que fortaleça os projetos de vida da pessoa”.
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE PARA QUEM?
A lógica punitivista e a privação de liberdade, conclui a palestrante, não só não resolvem os problemas que lhes cabem como criam outros ainda mais sérios. “Nós precisamos encontrar outras formas de fazer justiça”.
Fonte: Relatórios do MNPCT
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A psicóloga sustenta que o ambiente de privação de liberdade não permite a efetivação de estratégias terapêuticas, pedagógicas ou ressocializadoras. E dá como exemplo as instituições de privação de liberdade para adolescentes.
“Nas unidades de socioeducação, a última coisa que é priorizada é a perspectiva socioeducativa. Em primeiro lugar vem sempre a segurança, a repressão, a punição, a contenção”, conta. Em visitas a essas unidades, o Mecanismo encontrou diversos cassetetes de madeira utilizados pelos agentes socioeducadores. Os cassetetes eram guardados à vista de todos ou, por vezes, escondidos embaixo das camas dos agentes. Um deles possuía a inscrição "socioeducador". “Qual é a possibilidade de se viabilizar a perspectiva socioeducativa ou terapêutica em um ambiente tomado pela lógica repressora?”. |
A perita destacou ainda a seletividade como característica maior dos mecanismos de privação de liberdade no Brasil, voltados principalmente ao encarceramento da população preta, pobre e periférica.
“Essa é uma dimensão central. Há um circuito pelo qual a pessoa transita: ora ela está em uma Comunidade Terapêutica, depois ela vai presa, quando ela era jovem ela passou por uma unidade socioeducativa etc. Ou seja: há uma estrutura de privação de liberdade voltada para essa população”, afirma. “O que nos faz refletir: para que serve a privação de liberdade no Brasil?”.
“Essa é uma dimensão central. Há um circuito pelo qual a pessoa transita: ora ela está em uma Comunidade Terapêutica, depois ela vai presa, quando ela era jovem ela passou por uma unidade socioeducativa etc. Ou seja: há uma estrutura de privação de liberdade voltada para essa população”, afirma. “O que nos faz refletir: para que serve a privação de liberdade no Brasil?”.