Jorge Broide: “A prisão circula pelas ruas da cidade”
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.15
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O perfil da população de rua tem se aproximado cada vez mais do perfil da população carcerária, o que complexifica a elaboração de políticas públicas e as estratégias de atuação dos profissionais de saúde e assistência social.
A análise é do psicanalista e professor da PUC-SP Jorge Broide, que entre 2015 e 2016 coordenou na cidade de São Paulo a Pesquisa Social Participativa Pop Rua, tema de uma das aulas do Módulo II do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”. As inscrições para o Módulo III, que terá início em setembro, estão abertas até o dia 15 de agosto.
“A população de rua mudou porque o social mudou. E isso traz um problema gravíssimo para a política pública”, afirma. “A população penitenciária cresceu exponencialmente. As pessoas saem da prisão, não têm pra onde ir e vão pra rua”.
A análise é do psicanalista e professor da PUC-SP Jorge Broide, que entre 2015 e 2016 coordenou na cidade de São Paulo a Pesquisa Social Participativa Pop Rua, tema de uma das aulas do Módulo II do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”. As inscrições para o Módulo III, que terá início em setembro, estão abertas até o dia 15 de agosto.
“A população de rua mudou porque o social mudou. E isso traz um problema gravíssimo para a política pública”, afirma. “A população penitenciária cresceu exponencialmente. As pessoas saem da prisão, não têm pra onde ir e vão pra rua”.
As análises de Broide são corroboradas pelos dados do último censo da população de rua da capital paulista, realizado pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas).
Entre 2010 e 2015, o percentual de egressos do sistema carcerário entre os moradores de rua da área central da cidade subiu de 27% para 40%; na faixa etária dos 31 a 40 anos, os que passaram pela prisão já são maioria: 55%. O censo também verificou um enorme crescimento do total de pessoas em situação de rua em São Paulo: são quase 16 mil nesta condição, um aumento de 82,7% em quinze anos. |
“A estrutura do sistema prisional começa a circular pela cidade”, conta Broide. Para ele, que trabalha com pessoas em situação de rua há 40 anos, a lógica das prisões tem aparecido de modo cada vez mais forte nos hábitos e costumes desta população.
“O jeito de se relacionar, falar e construir laços começou a mudar, começou a ter uma outra linguagem”, diz. “A linguagem da rua começa a ser a do sistema prisional, do PCC (Primeiro Comando da Capital)”.
Entender essa lógica e aprender a lidar com ela é, segundo o psicanalista, essencial para os profissionais da saúde e da assistência social que atendem a população de rua.
“Quando a pessoa sai do sistema penitenciário e vai para um abrigo, ela está marcada pela lógica do PCC. De repente, os técnicos se veem nessa relação e não têm mais o controle do equipamento, que é controlado como uma cadeia”, relata.
A PESQUISA SOCIAL PARTICIPATIVA POP RUA
Na primeira reunião que realizaram com os dez pesquisadores sociais recém-contratados, Jorge e Emília Broide estavam preocupados, temendo que a equipe fosse barrada na entrada do prédio da prefeitura. Isso porque a contratação dos pesquisadores respeitou uma condição incomum: para ter chances neste processo seletivo, era necessário estar ou já ter estado em situação de rua.
“O jeito de se relacionar, falar e construir laços começou a mudar, começou a ter uma outra linguagem”, diz. “A linguagem da rua começa a ser a do sistema prisional, do PCC (Primeiro Comando da Capital)”.
Entender essa lógica e aprender a lidar com ela é, segundo o psicanalista, essencial para os profissionais da saúde e da assistência social que atendem a população de rua.
“Quando a pessoa sai do sistema penitenciário e vai para um abrigo, ela está marcada pela lógica do PCC. De repente, os técnicos se veem nessa relação e não têm mais o controle do equipamento, que é controlado como uma cadeia”, relata.
A PESQUISA SOCIAL PARTICIPATIVA POP RUA
Na primeira reunião que realizaram com os dez pesquisadores sociais recém-contratados, Jorge e Emília Broide estavam preocupados, temendo que a equipe fosse barrada na entrada do prédio da prefeitura. Isso porque a contratação dos pesquisadores respeitou uma condição incomum: para ter chances neste processo seletivo, era necessário estar ou já ter estado em situação de rua.
Clique acima para assistir à aula completa.
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Mas a chegada dos pesquisadores surpreendeu o casal Broide: todos vieram à reunião impecavelmente vestidos e bem-arrumados.
“A experiência de ser um pesquisador social foi muito transformadora na vida deles”, conta Jorge. “Desde ele ter um crachá, ter essa autoridade de ser um pesquisador, falar em nome da prefeitura”. Financiada pela SMDHC (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania) de São Paulo, a pesquisa, de caráter qualitativo, tinha a finalidade de subsidiar a criação de um Plano Municipal para a População em Situação de Rua na capital. |
A FASE PREPARATÓRIA
Antes de ir a campo entrevistar a população de rua, os pesquisadores – que recebiam mensalmente R$500, além de vale-transporte e alimentação – passaram por três dispositivos preparatórios, durante três meses.
“Segunda-feira de manhã, eles tinham comigo e com a Emília um grupo psicanalítico clássico, pra falar da vida deles”, conta Jorge, lembrando que o novo trabalho também gerava angústias. “Porque significava sair de um lugar conhecido para um lugar completamente desconhecido. Isso mexia com todos os bichos do sujeito”.
Além do grupo psicanalítico, os pesquisadores puderam contar com o apoio dos próprios colegas de equipe.
“Foi se criando uma solidariedade entre eles”, relata. “De vez em quando "batia a nave" em alguém e nós todos íamos atrás dessa pessoa, lá na maloca, conversar: fulano, vem cá, o que está acontecendo com você, você está angustiado?”.
Antes de ir a campo entrevistar a população de rua, os pesquisadores – que recebiam mensalmente R$500, além de vale-transporte e alimentação – passaram por três dispositivos preparatórios, durante três meses.
“Segunda-feira de manhã, eles tinham comigo e com a Emília um grupo psicanalítico clássico, pra falar da vida deles”, conta Jorge, lembrando que o novo trabalho também gerava angústias. “Porque significava sair de um lugar conhecido para um lugar completamente desconhecido. Isso mexia com todos os bichos do sujeito”.
Além do grupo psicanalítico, os pesquisadores puderam contar com o apoio dos próprios colegas de equipe.
“Foi se criando uma solidariedade entre eles”, relata. “De vez em quando "batia a nave" em alguém e nós todos íamos atrás dessa pessoa, lá na maloca, conversar: fulano, vem cá, o que está acontecendo com você, você está angustiado?”.
No segundo dispositivo, coordenado por outros dois psicólogos, a equipe desenvolvia o roteiro que guiaria as entrevistas nas ruas. “A pesquisa não tinha um questionário fixo. Ela tinha um eixo, que era: quem é que está na rua, qual é a história dessa pessoa, o que está acontecendo com ela?”.
Completava a formação uma oficina de leitura e escrita coordenada pelos profissionais do Ponte Jornalismo, na qual se procurava ampliar o repertório textual e desenvolver o estilo pessoal do texto de cada pesquisador. Passado o período preparatório, os pesquisadores saíram a campo por cinco meses. Durante três dias da semana, iam a campo e elaboravam crônicas a partir das entrevistas realizadas; nos outros dois, trabalhavam o material coletado no grupo coordenado pelos psicólogos e nas oficinas de texto da Ponte Jornalismo. |
Reunião da fase preparatória da pesquisa.
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PESQUISA E PSICANÁLISE
Autor do livro “Psicanálise: nas situações sociais críticas” (Editora Juruá, R$33,92), Broide trabalhou com os pesquisadores alguns dos conceitos fundamentais da disciplina.
“Era muito importante que eles entendessem o que é transferência”, exemplifica. Eu dizia a eles: quando você vai escutar alguém, você tem que saber que a pessoa fala da vida dela te colocando em um determinado lugar que ela tem, um lugar da estrutura dela. Como você a escuta a partir desse lugar?”.
O referencial psicanalítico foi mantido também no processo de análise do material coletado e produzido pelos pesquisadores.
“A gente pega as crônicas e vai levantando os principais significantes, os emergentes, o que está sempre aparecendo aqui e lá”, explica. “Ao longo do tempo, vamos conseguindo construir categorias de análise. Até que chega um momento em que tem uma saturação: esse dado aparece repetidamente e começa a ficar consistente”.
PRISIONEIRO DA RUA
Não é uma única ruptura, afirma Broide, que leva uma pessoa a morar na rua. Em geral, tem-se uma série de rupturas sucessivas, em diferentes esferas de socialização: na família, no trabalho, na comunidade etc.
Autor do livro “Psicanálise: nas situações sociais críticas” (Editora Juruá, R$33,92), Broide trabalhou com os pesquisadores alguns dos conceitos fundamentais da disciplina.
“Era muito importante que eles entendessem o que é transferência”, exemplifica. Eu dizia a eles: quando você vai escutar alguém, você tem que saber que a pessoa fala da vida dela te colocando em um determinado lugar que ela tem, um lugar da estrutura dela. Como você a escuta a partir desse lugar?”.
O referencial psicanalítico foi mantido também no processo de análise do material coletado e produzido pelos pesquisadores.
“A gente pega as crônicas e vai levantando os principais significantes, os emergentes, o que está sempre aparecendo aqui e lá”, explica. “Ao longo do tempo, vamos conseguindo construir categorias de análise. Até que chega um momento em que tem uma saturação: esse dado aparece repetidamente e começa a ficar consistente”.
PRISIONEIRO DA RUA
Não é uma única ruptura, afirma Broide, que leva uma pessoa a morar na rua. Em geral, tem-se uma série de rupturas sucessivas, em diferentes esferas de socialização: na família, no trabalho, na comunidade etc.
“Feitas essas rupturas, ele vai refazer esses laços todos no mesmo lugar: é na rua que ele ganha o dinheiro dele, tem a vida afetiva etc. Tudo aquilo que ele perdeu, ele refaz naquele território da cidade”.
Fazendo do espaço urbano em que habita o depositário substituto de quase todas as suas necessidades, o sujeito acaba por se tornar, segundo Broide, um prisioneiro da rua. “Por isso que, quando alguém o tira da rua, ele voltar para a rua”, diz. “O pessoal diz que ele é vagabundo. Não é isso. É que tudo aquilo que é significativo para ele está ali. E, quando você o tira dali, você ainda cria uma nova ruptura”. |
A CIDADE QUE PULSA
É heterogêneo o perfil da população de rua traçado pela Pesquisa Social Participativa.
Além do número crescente de egressos do sistema prisional, as ruas de São Paulo têm recebido cada vez mais imigrantes africanos e latino-americanos. Também segundo o censo da Fipe, a presença dos imigrantes, apesar de recente e relativamente pequena, tem tendência de crescimento.
É heterogêneo o perfil da população de rua traçado pela Pesquisa Social Participativa.
Além do número crescente de egressos do sistema prisional, as ruas de São Paulo têm recebido cada vez mais imigrantes africanos e latino-americanos. Também segundo o censo da Fipe, a presença dos imigrantes, apesar de recente e relativamente pequena, tem tendência de crescimento.
“Temos também o pessoal das periferias, que vai à noite para as ruas, para receber comida e roupa de grupos religiosos que as distribuem. Temos o pessoal das ocupações, em prédios do centro da cidade: é outro público, que está numa borda entre a rua e a ocupação”.
Cada um desses públicos possui as suas peculiaridades, cujo conhecimento é fundamental para o bom funcionamento dos equipamentos e serviços a eles destinados. “Mas o serviço de assistência não está preparado para isso”. Daí, sustenta Broide, a importância da realização deste tipo de “escuta” nos espaços urbanos. |
Pesquisador social durante entrevista com morador de rua.
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“Tudo isso que descobrimos vem da escuta das ruas da cidade, que é o que nós chamamos de escuta territorial”, explica. “Como se escuta a cidade que pulsa, a vida que se joga na cidade? Toda essa pesquisa consiste em criar dispositivos que permitem que o sujeito surja e nos diga o que ele está vivendo”.