Andrea Guerra: “É no impasse que encontramos
a força da intervenção”
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.9
BOLETIM INFORMATIVO N.9
Para tratar da temática da socioeducação e do adolescente em conflito com a lei, o CERP-SC trouxe para Florianópolis, no segundo semestre de 2016, a psicanalista e professora da Universidade Federal de Minas Gerais Andrea Guerra.
A aula fez parte da primeira parte do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, cujo segundo módulo se inicia na próxima sexta-feira (para conferir a programação completa deste semestre, clique aqui). Para a psicanalista, que além de atuar no sistema socioeducacional de Minas Gerais tem desenvolvido pesquisas na França e na Colômbia, o recrudescimento do braço repressivo do Estado como resposta à criminalidade juvenil é um fenômeno mundial. |
Assista aqui a aula completa da psicanalista Andrea Guerra.
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“Analisamos modos de tratamento ao adolescente em conflito com a lei e marcas discursivas e políticas em cada país, com suas especificidades”, contou Andrea. “Na França, eles são os estrangeiros-inimigos; na Colômbia, são ora relacionados ao tráfico, ora às forças armadas; no Brasil, são homens jovens, negros, pobres e moradores de aglomerados, onde hoje se produz um genocídio”.
PRODUZINDO LINHAS DE FUGA
Se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define a socioeducação como “educação para a cidadania”, como devemos interpretar esta definição?
“Ora, se socioeducar é para ‘salvar’, o adolescente é vítima; se é para ‘castigar’, então ele é o culpado ou perigoso”, afirma a psicanalista, que propõe uma outra forma de compreender o termo. “Entendo que socioeducar, entendido como educação para a cidadania, significa tentar produzir uma linha de fuga àquilo que agencia o adolescente no crime”.
Para construir estas linhas de fuga, o projeto Já É, executado em duas regiões favelizadas de Belo Horizonte, aposta na produção de quadrinhos.
“A intenção na produção dos quadrinhos é a de criar um substrato material pra que algo da memória, da história, da subjetividade, da consolidação de um sentimento de pertencimento possa se processar entre os jovens dos aglomerados, e que se possa produzir a partir daí um efeito social”, explica Andreia.
PRODUZINDO LINHAS DE FUGA
Se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define a socioeducação como “educação para a cidadania”, como devemos interpretar esta definição?
“Ora, se socioeducar é para ‘salvar’, o adolescente é vítima; se é para ‘castigar’, então ele é o culpado ou perigoso”, afirma a psicanalista, que propõe uma outra forma de compreender o termo. “Entendo que socioeducar, entendido como educação para a cidadania, significa tentar produzir uma linha de fuga àquilo que agencia o adolescente no crime”.
Para construir estas linhas de fuga, o projeto Já É, executado em duas regiões favelizadas de Belo Horizonte, aposta na produção de quadrinhos.
“A intenção na produção dos quadrinhos é a de criar um substrato material pra que algo da memória, da história, da subjetividade, da consolidação de um sentimento de pertencimento possa se processar entre os jovens dos aglomerados, e que se possa produzir a partir daí um efeito social”, explica Andreia.
A produção do quadrinho, explica a psicanalista, é ao tanto uma maneira de valorizar a cultura local – inscrevendo na cidade a história dos moradores da comunidade –, quanto uma forma de permitir que os próprios jovens elaborem experiências que estavam, até então, silenciadas.
Uma das intervenções do projeto Já É ocorreu em um aglomerado conhecido como Buraco Quente, localizado em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte. “Os jovens falavam: ‘Qualquer coisa que a gente disser sobre Buraco Quente tem que começar com a chacina’. Fazia dez anos que a chacina tinha acontecido e sobre ela nenhuma palavra tinha sido dita”, conta Andrea. “Perguntávamos: ‘o que é a chacina?’, ‘o que aconteceu?’, e eles respondiam: ‘ah, foi muito confuso, muito difícil’. Tivemos que procurar em jornais, em um primeiro momento, até os jovens começarem a falar e a tratar disso”. |
Quadrinho produzido por jovens do algomerado Buraco Quente.
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PENSAMENTO BINÁRIO
Ao enfrentar a criminalidade juvenil exclusivamente por meio do aumento do seu braço repressivo, o Estado não apenas impede que os jovens produzam linhas de fuga, como acaba por inseri-los em um ciclo pernicioso denominado pela psicanalista como “fixação do pior”.
“Quando a gente não legitima a diversidade de formas de vida, mas exclui uma parte delas, há um retorno. O jovem consegue constituir um lugar para si por meio de polos antagônicos e narrativas binárias. Isso produz como consequência comunidades articuladas em torno de determinadas ideias-mestras, e sem nenhuma possibilidade de diálogo entre si”, diz.
Este pensamento binário, afirma Andrea, produz um sistema de rivalidades dentro da própria comunidade, levando-a a se dividir internamente e a retirar de seu horizonte os embates políticos mais importantes.
“Essas oposições geram uma restrição de circulação chocante: o jovem por vezes não pode sair de uma praça, porque descer ou subir uma rua diferente pode significar adentrar em território inimigo e poder ser eliminado por grupos rivais. Acirram-se as diferenças de tal forma que se perde a possibilidade de encontrar mediações. Alianças que poderiam superar os binarismos e produzir outras formas de relação vão ficando cada vez mais raras”, conta.
QUEBRAR O CURTO-CIRCUITO
Uma das hipóteses de Andrea é a de que é necessário quebrar este curto-circuito para permitir que outra narrativa de vida apareça ao jovem como possível. A psicanalista cita como exemplo uma comunidade de Belo Horizonte que estava em disputa com outra, chamada Beco do Rato.
“Percebemos uma retroalimentação, que vinha com esses termos: matar, revoltar-se, vingar. Revolta, vingança e morte apareceram como um curto-circuito”, explica. “Começamos a indagá-los: ‘como assim?’, ‘por que vocês brigam com o Beco do Rato?’, ‘quando começou isso?’. Apareciam versões diferentes, conflitantes, como nos mitos. Passamos a entender que não havia um momento de fundação. Operava ali uma perpetuação de uma codificação de vida, que encontra no sistema de revolta-vingança-morte um circuito de atuação que captura o jovem”.
Para quebrar este curto-circuito, é necessário, diz Andrea, “vacilar a certeza da morte”, permitir que a morte deixe de aparecer a estes jovens como destino certo e inevitável, a fim de lhes apresentar outras possibilidades de inscrição simbólica de suas vidas.
Ao enfrentar a criminalidade juvenil exclusivamente por meio do aumento do seu braço repressivo, o Estado não apenas impede que os jovens produzam linhas de fuga, como acaba por inseri-los em um ciclo pernicioso denominado pela psicanalista como “fixação do pior”.
“Quando a gente não legitima a diversidade de formas de vida, mas exclui uma parte delas, há um retorno. O jovem consegue constituir um lugar para si por meio de polos antagônicos e narrativas binárias. Isso produz como consequência comunidades articuladas em torno de determinadas ideias-mestras, e sem nenhuma possibilidade de diálogo entre si”, diz.
Este pensamento binário, afirma Andrea, produz um sistema de rivalidades dentro da própria comunidade, levando-a a se dividir internamente e a retirar de seu horizonte os embates políticos mais importantes.
“Essas oposições geram uma restrição de circulação chocante: o jovem por vezes não pode sair de uma praça, porque descer ou subir uma rua diferente pode significar adentrar em território inimigo e poder ser eliminado por grupos rivais. Acirram-se as diferenças de tal forma que se perde a possibilidade de encontrar mediações. Alianças que poderiam superar os binarismos e produzir outras formas de relação vão ficando cada vez mais raras”, conta.
QUEBRAR O CURTO-CIRCUITO
Uma das hipóteses de Andrea é a de que é necessário quebrar este curto-circuito para permitir que outra narrativa de vida apareça ao jovem como possível. A psicanalista cita como exemplo uma comunidade de Belo Horizonte que estava em disputa com outra, chamada Beco do Rato.
“Percebemos uma retroalimentação, que vinha com esses termos: matar, revoltar-se, vingar. Revolta, vingança e morte apareceram como um curto-circuito”, explica. “Começamos a indagá-los: ‘como assim?’, ‘por que vocês brigam com o Beco do Rato?’, ‘quando começou isso?’. Apareciam versões diferentes, conflitantes, como nos mitos. Passamos a entender que não havia um momento de fundação. Operava ali uma perpetuação de uma codificação de vida, que encontra no sistema de revolta-vingança-morte um circuito de atuação que captura o jovem”.
Para quebrar este curto-circuito, é necessário, diz Andrea, “vacilar a certeza da morte”, permitir que a morte deixe de aparecer a estes jovens como destino certo e inevitável, a fim de lhes apresentar outras possibilidades de inscrição simbólica de suas vidas.
“Quando fazemos isso, o sujeito se divide, perde um pouco o fio que o crime o dá e pode, então, aparecer uma nova possibilidade”, afirma. “No socioeducativo, temos trabalhado com essa hipótese e direção. E entendemos ser um grande dispositivo pra criar um intervalo neste curto-circuito”.
A proposta de atuação no interior do curto-circuito, ainda que seja para nele promover a criação de um intervalo, deixa claro que a atuação daquele que lida com os efeitos psicossociais da violência deve passar longe da simples negação dos conflitos e impasses vividos pelos sujeitos afetados.
“É importante ressaltar: o ponto central é encontrar no próprio impasse de uma situação a força viva da intervenção”, destaca Andrea. “Impasse é pano para a manga, é ponto de trabalho.”
A proposta de atuação no interior do curto-circuito, ainda que seja para nele promover a criação de um intervalo, deixa claro que a atuação daquele que lida com os efeitos psicossociais da violência deve passar longe da simples negação dos conflitos e impasses vividos pelos sujeitos afetados.
“É importante ressaltar: o ponto central é encontrar no próprio impasse de uma situação a força viva da intervenção”, destaca Andrea. “Impasse é pano para a manga, é ponto de trabalho.”