Emília Broide: “Criar estratégias novas para impasses
é o que fazemos cotidianamente no SUS e no SUAS"
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.19
BOLETIM INFORMATIVO N.19
Faz parte do cotidiano dos profissionais das redes públicas de saúde e assistência social deparar-se com situações novas, cujas estratégias de solução não podem ser encontradas em manuais de ação ou sistematizações teóricas.
Para enfrentá-las “sem sucumbir aos dramas das falas dos usuários”, a psicanalista Emília Estivalet Broide propõe um trabalho que estabeleça um diálogo entre a prática clínica e a supervisão institucional. “A teoria tem um limite. A função da supervisão é a de não nos deixar ficar com as mesmas teorias, mas nos abrir à criação de novas estratégias”, explica.
Para enfrentá-las “sem sucumbir aos dramas das falas dos usuários”, a psicanalista Emília Estivalet Broide propõe um trabalho que estabeleça um diálogo entre a prática clínica e a supervisão institucional. “A teoria tem um limite. A função da supervisão é a de não nos deixar ficar com as mesmas teorias, mas nos abrir à criação de novas estratégias”, explica.
“Resgatar o trabalho técnico, a escuta do técnico para que ele não sucumba ao drama daquilo que ele ouve cotidianamente: existe aí um caráter político que é o que possibilita, muitas vezes, que se saia de uma situação de impasse”.
Antes de tomar a supervisão como tema de seu doutorado (para baixar a Tese completa, clique aqui), Emília pôde observar a importância deste dispositivo sob diferentes perspectivas: primeiro, como psicóloga, vivenciou as preparações de um hospital para receber as visitas ministeriais; depois, convidada a trabalhar no Ministério da Saúde, viveu a experiência de estar no outro lado. “Ao longo da minha trajetória profissional tive a oportunidade de experimentar diversos lugares institucionais. O lugar da supervisão se tornou algo muito importante nesse percurso.” |
Assista aqui à aula completa de Emília Broide.
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ANGÚSTIA E MOBILIZAÇÃO
Nem todo atendimento efetuado por um técnico chega a constituir um caso clínico capaz de servir como fio condutor de uma supervisão institucional. Mas em que momento, então, se dá a passagem do atendimento ao caso?
“Um atendimento é responder ao telefone, receber alguém na porta de casa, acolher um usuário no serviço. Transformar um atendimento em um caso diz de uma implicação daquele que está ouvindo ou atendendo”, explica.
Para a psicanalista, é importante que os técnicos assumam que os atendimentos “vão com eles” para casa.
“Quem trabalha com as políticas públicas de assistência social e saúde sabe o quanto os casos vão conosco para casa. Temos que poder reconhecer isso, que não trabalhamos em vão: escutamos dramas humanos, que impactam nosso corpo. Faz parte do nosso trabalho receber essa carga”.
É ao ser capaz de elaborar a sua própria implicação, ouvindo “isso que bate, que nos toca, que nos pega no corpo e nos faz pensar”, que surge a possibilidade de transformar o atendimento em caso clínico. Daí, para Emília, o papel fundamental da angústia que determinados casos provocam na equipe.
“De todas as situações passíveis de interrogações que enfrentamos em nosso trabalho, a equipe pensa, produz consenso e traz para a supervisão uma delas, um determinado caso. A angústia é o que nos possibilita sair de uma situação paralisante. Se por um lado ela paralisa, por outro mobiliza e move o sujeito em direção ao desejo.”
Mesma angústia que parece ter movido também o pai da psicanálise, que teria feito de sua clínica uma espécie de “transmissão de um não saber”.
“O que Freud nos traz nos seus cinco famosos casos clínicos são seus insucessos e não seus êxitos”, lembra Emília. “Nós sempre buscamos os êxitos, mas o próprio Freud traz, em sua obra, majoritariamente seus impasses e angústias”.
TRAÇOS SINGULARES
Ao se escutar aqueles que narram o caso clínico, não se deve ter o objetivo, diz Emília, de se chegar a uma compreensão comum ou completa – situação em que o grupo de técnicos operaria de modo análogo ao fenômeno de massa: todos pensando homogeneamente.
“Ao contrário, quanto mais as pessoas puderem falar do seu ponto de vista, mais é possível entender facetas diferentes do caso. Não buscamos ter uma noção do caso ‘inteiro’: o saber é sempre incompleto, denso, repleto de detalhes”.
Ao compreender a heterogeneidade interpretativa como potência a ser explorada e não como déficit de compreensão a ser extirpado, o grupo passa a descobrir em cada fala uma nova linha que compõe a tessitura do caso em questão.
“Trabalhar um caso em equipe, e não individualmente, é uma rica possibilidade de aparição desses traços singulares: como cada pessoa se vinculou ao caso, a profundidade da mobilização sentida por cada um”.
Em larga medida, explica, o trabalho da supervisão consiste em resgatar o enigma da singularidade, retirando os atendimentos da vala-comum imposta pela burocratização dos serviços. “A violência do dia-a-dia nos leva ao desencantamento com os casos. Voltar a se encantar com a prática clínica, com a prática do escutar, passa por certa oxigenação, para a qual a supervisão pode colaborar”.
Segundo Emília, um dos obstáculos à escuta nos serviços é a banalização das histórias contadas pelos usuários. “No atendimento, logo entramos naquele tempo que carrega em si certo ranço: o sujeito chega não com a expectativa de que algo mude, mas desacreditado no equipamento; do nosso lado, pensamos: ah, mais um!”.
Outro obstáculo é o que a psicanalista chama de “gestão burocrática do precário”: a economia do pensamento impõe-se como uma forma que determina os modos como os serviços e a política pública são geridos.
“A burocracia sempre vai tentar encurtar nossa capacidade de pensar. Diante de tantos papéis a preencher e relatórios a fazer, nossa escuta fica obstaculizada. Perceber essa outra temporalidade, do sujeito, a densidade do tempo, vai na contramão da burocracia”.
MARCAS DO TEMPO
A impotência diante das dificuldades trazidas pelos casos marca o trabalho em saúde mental, em especial nos serviços públicos destinados a pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.
“Pouco se reconhece do já feito, do já escutado. Há uma insistência do 'por onde começar?', sendo que muitas vezes o trabalho já começou”, pontua Emília. “É preciso reconhecer que não é na 'solução' do problema que estão as respostas: a própria mobilização já é um caminho”.
Fazendo referência ao dito freudiano segundo o qual “os poetas antecipam os psicanalistas”, Emília recorre ao trabalho do artista plástico italiano Giuseppe Penone para descrever as modificações produzidas pelo profissional da saúde mental em seu trabalho de campo.
Nem todo atendimento efetuado por um técnico chega a constituir um caso clínico capaz de servir como fio condutor de uma supervisão institucional. Mas em que momento, então, se dá a passagem do atendimento ao caso?
“Um atendimento é responder ao telefone, receber alguém na porta de casa, acolher um usuário no serviço. Transformar um atendimento em um caso diz de uma implicação daquele que está ouvindo ou atendendo”, explica.
Para a psicanalista, é importante que os técnicos assumam que os atendimentos “vão com eles” para casa.
“Quem trabalha com as políticas públicas de assistência social e saúde sabe o quanto os casos vão conosco para casa. Temos que poder reconhecer isso, que não trabalhamos em vão: escutamos dramas humanos, que impactam nosso corpo. Faz parte do nosso trabalho receber essa carga”.
É ao ser capaz de elaborar a sua própria implicação, ouvindo “isso que bate, que nos toca, que nos pega no corpo e nos faz pensar”, que surge a possibilidade de transformar o atendimento em caso clínico. Daí, para Emília, o papel fundamental da angústia que determinados casos provocam na equipe.
“De todas as situações passíveis de interrogações que enfrentamos em nosso trabalho, a equipe pensa, produz consenso e traz para a supervisão uma delas, um determinado caso. A angústia é o que nos possibilita sair de uma situação paralisante. Se por um lado ela paralisa, por outro mobiliza e move o sujeito em direção ao desejo.”
Mesma angústia que parece ter movido também o pai da psicanálise, que teria feito de sua clínica uma espécie de “transmissão de um não saber”.
“O que Freud nos traz nos seus cinco famosos casos clínicos são seus insucessos e não seus êxitos”, lembra Emília. “Nós sempre buscamos os êxitos, mas o próprio Freud traz, em sua obra, majoritariamente seus impasses e angústias”.
TRAÇOS SINGULARES
Ao se escutar aqueles que narram o caso clínico, não se deve ter o objetivo, diz Emília, de se chegar a uma compreensão comum ou completa – situação em que o grupo de técnicos operaria de modo análogo ao fenômeno de massa: todos pensando homogeneamente.
“Ao contrário, quanto mais as pessoas puderem falar do seu ponto de vista, mais é possível entender facetas diferentes do caso. Não buscamos ter uma noção do caso ‘inteiro’: o saber é sempre incompleto, denso, repleto de detalhes”.
Ao compreender a heterogeneidade interpretativa como potência a ser explorada e não como déficit de compreensão a ser extirpado, o grupo passa a descobrir em cada fala uma nova linha que compõe a tessitura do caso em questão.
“Trabalhar um caso em equipe, e não individualmente, é uma rica possibilidade de aparição desses traços singulares: como cada pessoa se vinculou ao caso, a profundidade da mobilização sentida por cada um”.
Em larga medida, explica, o trabalho da supervisão consiste em resgatar o enigma da singularidade, retirando os atendimentos da vala-comum imposta pela burocratização dos serviços. “A violência do dia-a-dia nos leva ao desencantamento com os casos. Voltar a se encantar com a prática clínica, com a prática do escutar, passa por certa oxigenação, para a qual a supervisão pode colaborar”.
Segundo Emília, um dos obstáculos à escuta nos serviços é a banalização das histórias contadas pelos usuários. “No atendimento, logo entramos naquele tempo que carrega em si certo ranço: o sujeito chega não com a expectativa de que algo mude, mas desacreditado no equipamento; do nosso lado, pensamos: ah, mais um!”.
Outro obstáculo é o que a psicanalista chama de “gestão burocrática do precário”: a economia do pensamento impõe-se como uma forma que determina os modos como os serviços e a política pública são geridos.
“A burocracia sempre vai tentar encurtar nossa capacidade de pensar. Diante de tantos papéis a preencher e relatórios a fazer, nossa escuta fica obstaculizada. Perceber essa outra temporalidade, do sujeito, a densidade do tempo, vai na contramão da burocracia”.
MARCAS DO TEMPO
A impotência diante das dificuldades trazidas pelos casos marca o trabalho em saúde mental, em especial nos serviços públicos destinados a pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.
“Pouco se reconhece do já feito, do já escutado. Há uma insistência do 'por onde começar?', sendo que muitas vezes o trabalho já começou”, pontua Emília. “É preciso reconhecer que não é na 'solução' do problema que estão as respostas: a própria mobilização já é um caminho”.
Fazendo referência ao dito freudiano segundo o qual “os poetas antecipam os psicanalistas”, Emília recorre ao trabalho do artista plástico italiano Giuseppe Penone para descrever as modificações produzidas pelo profissional da saúde mental em seu trabalho de campo.
Obra "Continuerà a crescere tranne che in quel punto", de Giuseppe Penone. Árvore (Ailanthus altissima) e bronze.
Esta foto mostra como estava a obra em 2008. (Fonte: Archivio Penone)
Esta foto mostra como estava a obra em 2008. (Fonte: Archivio Penone)
“Ao investigar a escultura, com seu aspecto de estático, pronto e imutável, Penone produz uma obra que desafia essas características: uma mão de bronze que segura o tronco de uma árvore. Ele introduz matéria viva em seus trabalhos e fotografa-os ao longo do tempo”, conta.
Com o passar dos anos, é possível perceber marcas e sulcos da mão na árvore. A mão, parada; a árvore, crescendo e se expandindo. “O que ele coloca é que não se podem deter as marcas do tempo, presentes na escultura. Mesmo aquilo que parece inamovível, em um primeiro momento, adquire movimento".
“Penso em nosso trabalho de campo como essa mão que segura e produz marcas na árvore. Pensamos que não tem jeito ou solução, mas algo acontece: ao longo dos anos, produzimos alguns sulcos, marcas, pontuações. Trata-se de pequenas modificações e rastros deixados que, muitas vezes, sequer saberemos quais são”.
Com o passar dos anos, é possível perceber marcas e sulcos da mão na árvore. A mão, parada; a árvore, crescendo e se expandindo. “O que ele coloca é que não se podem deter as marcas do tempo, presentes na escultura. Mesmo aquilo que parece inamovível, em um primeiro momento, adquire movimento".
“Penso em nosso trabalho de campo como essa mão que segura e produz marcas na árvore. Pensamos que não tem jeito ou solução, mas algo acontece: ao longo dos anos, produzimos alguns sulcos, marcas, pontuações. Trata-se de pequenas modificações e rastros deixados que, muitas vezes, sequer saberemos quais são”.