Jorge Broide: “Políticas públicas não devem estar
amarradas à família, mas às ancoragens”
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.2
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As políticas públicas de saúde e de assistência social equivocam-se quando se voltam exclusivamente à reinserção familiar. Para substituir esta orientação, o psicanalista e professor da PUC-SP Jorge Broide propõe o conceito de “ancoragem”.
“Por que cargas d'água eu acho que é a família que resolve? Se o cara já saiu de lá, já sofreu o que sofreu?”, questiona.
Broide foi o especialista convidado pelo CERP-SC para a segunda aula do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, ocorrida no último dia 26/08, na Escola de Saúde Pública de Santa Catarina. A aula teve como tema "A psicanálise em situação de extrema vulnerabilidade social". Para ilustrar sua proposição, o professor colocou aos 90 alunos do curso a seguinte pergunta: "o que há no leite com o qual uma mãe em situação de vulnerabilidade social amamenta o seu filho?". |
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“Nesse leite, tem a questão do desemprego, da falta grana. Tem a questão da saúde: ‘ela fez pré-natal?’, ‘o médico está vendo o bebê?’. Esse leite tem a questão da habitação, porque ela está morando em um barraco, em uma ocupação”, afirmou. “Ou seja: esse leite é composto também pelas relações sociais em que essa família está inserida”.
Segundo Broide, diante de todas estas urgências, torna-se difícil para a mãe atentar-se devidamente às necessidades de seu filho. “Então a gente pode dizer que esse pobre moleque vive de forma muito intensa a invisibilidade, o desamparo, a sensação de que o outro não está ali. E isso desde que ele nasceu”.
Em uma situação como esta, insistir na reinserção familiar como solução pode ser não apenas ineficiente, mas até mesmo retraumatizante. “Vai falar para a pessoa em situação de rua que ele tem que refazer os vínculos com a família. É a última coisa que ele quer. Aquele é o lugar do horror que ele viveu. E é por isso que ele está na rua”.
ESCUTAR AS ANCORAGENS
Jorge e sua esposa, a também psicanalista Emília Estivalet Broide, conceberam um novo conceito, com o qual propõem aos profissionais da rede pública uma reorientação de suas escutas: em vez de voltadas à família, a escuta deve se orientar pelas “ancoragens”.
“Do que nós estamos falando, aqui? De uma teoria, que nos permita construir uma metodologia que seja mais efetiva em nosso trabalho com as situações sociais críticas”, explica.
“Nós temos que começar a escutar de outro jeito essas pessoas que atendemos”, diz Broide. “Se ela está viva, é porque existem alguns fios, muitas vezes invisíveis, que a amarram à vida: são as ancoragens”.
Ao fazer uso deste conceito, o profissional deixa de ter como foco único a reinserção familiar, atentando-se a outras relações que podem ser decisivas para as perspectivas de reabilitação do usuário.
“Eu preciso entender qual é a relação dele com o cachorro, com a namorada, com a vizinha". Se a ancoragem de um usuário for o seu cachorro – exemplifica o psicanalista –, esta relação pode servir como condutora do atendimento.
“Você gosta tanto desse seu cachorro? Então você vai levá-lo ao veterinário, vai cuidar dele, vai dar banho e vai trazê-lo aqui, para eu ver”.
Em outra ocasião, ilustra Broide, a fala de um adolescente que diz “gostar muito de jogar bola” pode revelar a existência de um vínculo muito forte, por exemplo, com um professor de Educação Física. “Se for o caso, eu vou atrás desse professor, vou telefonar para ele e dizer: Professor Fulano, eu estou aqui atendendo o Beltrano. Para ele, você é uma pessoa muito importante. Eu posso te fazer uma visita?".
Uma vez identificadas, as ancoragens passam, então, a fornecer um caminho possível para o atendimento clínico.
“É para o território que eu preciso ir? Para onde eu preciso ir? Eu preciso pensar como vou lidar com essas ancoragens, pois essa é a única oportunidade que eu tenho para que esse cara não morra, para que ele viva”.
CONVERSAR COM A MORTE
Além de identificar os fios que ligam o sujeito à vida, Jorge propõe que também sejamos capazes de nos atentar para o inverso: a proximidade que as pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social possuem com a morte.
“Quantos moleques entram em nossa sala e nós vemos a morte grudada em seus cangotes? Como é que a gente pode pegar a morte - que está presente nesse tipo de atendimento - e colocá-la "em cima da mesa", para conversarmos sobre ela?”, questiona Broide. “Nós precisamos aprender a conversar com a morte”.
Mas se dar visibilidade às ligações do sujeito com a vida, por um lado, e falar com a morte, por outro, podem parecer direcionamentos opostos, ambas as atitudes se encontram, para Broide, no conceito de dispositivo.
“O que é um dispositivo? É uma máquina de fazer ver e fazer falar”, explica. “O que nós estamos fazendo neste curso, por exemplo, é a construção de um dispositivo. Este curso é uma grande máquina de fazer ver e fazer falar”.
Mas identificar ancoragens e conversar com a morte, advertiu Jorge, são atitudes que, embora úteis, estão longe de constituir panaceias. “Não é que nós vamos salvar a vida do moleque. Mas ajuda bem, viu?”.
O professor destacou, ainda, a necessidade de o profissional ser capaz de lidar com o seu próprio sofrimento. “Porque, quando morre a dona Maria, a gente morre um pouquinho, junto, não é?”.
Segundo Broide, diante de todas estas urgências, torna-se difícil para a mãe atentar-se devidamente às necessidades de seu filho. “Então a gente pode dizer que esse pobre moleque vive de forma muito intensa a invisibilidade, o desamparo, a sensação de que o outro não está ali. E isso desde que ele nasceu”.
Em uma situação como esta, insistir na reinserção familiar como solução pode ser não apenas ineficiente, mas até mesmo retraumatizante. “Vai falar para a pessoa em situação de rua que ele tem que refazer os vínculos com a família. É a última coisa que ele quer. Aquele é o lugar do horror que ele viveu. E é por isso que ele está na rua”.
ESCUTAR AS ANCORAGENS
Jorge e sua esposa, a também psicanalista Emília Estivalet Broide, conceberam um novo conceito, com o qual propõem aos profissionais da rede pública uma reorientação de suas escutas: em vez de voltadas à família, a escuta deve se orientar pelas “ancoragens”.
“Do que nós estamos falando, aqui? De uma teoria, que nos permita construir uma metodologia que seja mais efetiva em nosso trabalho com as situações sociais críticas”, explica.
“Nós temos que começar a escutar de outro jeito essas pessoas que atendemos”, diz Broide. “Se ela está viva, é porque existem alguns fios, muitas vezes invisíveis, que a amarram à vida: são as ancoragens”.
Ao fazer uso deste conceito, o profissional deixa de ter como foco único a reinserção familiar, atentando-se a outras relações que podem ser decisivas para as perspectivas de reabilitação do usuário.
“Eu preciso entender qual é a relação dele com o cachorro, com a namorada, com a vizinha". Se a ancoragem de um usuário for o seu cachorro – exemplifica o psicanalista –, esta relação pode servir como condutora do atendimento.
“Você gosta tanto desse seu cachorro? Então você vai levá-lo ao veterinário, vai cuidar dele, vai dar banho e vai trazê-lo aqui, para eu ver”.
Em outra ocasião, ilustra Broide, a fala de um adolescente que diz “gostar muito de jogar bola” pode revelar a existência de um vínculo muito forte, por exemplo, com um professor de Educação Física. “Se for o caso, eu vou atrás desse professor, vou telefonar para ele e dizer: Professor Fulano, eu estou aqui atendendo o Beltrano. Para ele, você é uma pessoa muito importante. Eu posso te fazer uma visita?".
Uma vez identificadas, as ancoragens passam, então, a fornecer um caminho possível para o atendimento clínico.
“É para o território que eu preciso ir? Para onde eu preciso ir? Eu preciso pensar como vou lidar com essas ancoragens, pois essa é a única oportunidade que eu tenho para que esse cara não morra, para que ele viva”.
CONVERSAR COM A MORTE
Além de identificar os fios que ligam o sujeito à vida, Jorge propõe que também sejamos capazes de nos atentar para o inverso: a proximidade que as pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social possuem com a morte.
“Quantos moleques entram em nossa sala e nós vemos a morte grudada em seus cangotes? Como é que a gente pode pegar a morte - que está presente nesse tipo de atendimento - e colocá-la "em cima da mesa", para conversarmos sobre ela?”, questiona Broide. “Nós precisamos aprender a conversar com a morte”.
Mas se dar visibilidade às ligações do sujeito com a vida, por um lado, e falar com a morte, por outro, podem parecer direcionamentos opostos, ambas as atitudes se encontram, para Broide, no conceito de dispositivo.
“O que é um dispositivo? É uma máquina de fazer ver e fazer falar”, explica. “O que nós estamos fazendo neste curso, por exemplo, é a construção de um dispositivo. Este curso é uma grande máquina de fazer ver e fazer falar”.
Mas identificar ancoragens e conversar com a morte, advertiu Jorge, são atitudes que, embora úteis, estão longe de constituir panaceias. “Não é que nós vamos salvar a vida do moleque. Mas ajuda bem, viu?”.
O professor destacou, ainda, a necessidade de o profissional ser capaz de lidar com o seu próprio sofrimento. “Porque, quando morre a dona Maria, a gente morre um pouquinho, junto, não é?”.
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SOBRE O CERP-SC
O Centro de Estudos em Reparação Psíquica de Santa Catarina (CERP-SC) é uma realização do Instituto APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre), no âmbito do Projeto Clínicas do Testemunho, financiado pela Comissão de Anistia, órgão do Governo Federal brasileiro, e pelo Newton Fund, iniciativa do governo britânico. O curso – financiado pelo Newton Fund e totalmente gratuito – é realizado em parceria com a Escola de Saúde Pública de Santa Catarina; a UFSC, por meio do grupo "Psicologia, Direitos Humanos e Políticas Públicas", linha de pesquisa do NUPRA (Núcleo de Práticas Sociais e Constituição do Sujeito); e o ICHHR (International Centre for Health and Human Rights), ONG britânica especializada em reparação psíquica a vítimas de graves violações de direitos humanos. |