Bruno Gomes: “A base da redução de danos é o diálogo"
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.22
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São três as características que nos permitem aglutinar sob o guarda-chuva da “redução de danos” diferentes estratégias de cuidado com pessoas que fazem uso abusivo de drogas: a estratégia deve ter como foco a qualidade de vida, ser testada e monitorada para ter sua eficácia comprovada e, sobretudo, ser construída a partir de um diálogo.
É deste modo que Bruno Ramos Gomes, psicólogo que dedicou 12 dos seus 35 anos de vida ao cuidado de usuários da Cracolândia, no centro da cidade de São Paulo, resume os fundamentos dessa prática.
“Se partimos só do nosso ponto de vista, estamos julgando, estamos sendo violentos com o outro e, principalmente, não estamos dialogando nem construindo uma estratégia de cuidado efetiva”, afirma. Mas, antes de explicar o conceito de redução de danos, o psicólogo coloca uma pergunta mais fundamental: afinal, o que é droga? |
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A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO
Tomemos, propõe Bruno, diferentes versões e diferentes contextos de uso de uma mesma substância, como a cocaína.
“Se você chegar para um cara que está cheirando uma carreira de cocaína e disser que ele está se drogando, ele não vai ter muito como negar”, exemplifica. “Mas, se você chegar para uma mulher andina que está mascando folhas de coca e disser que ela está se drogando, talvez ela fique meio brava com você”.
Para esta mulher, explica, mascar folhas de coca é um hábito ancestral, fundante de sua cultura, integrador da comunidade e usado para diversas atividades importantes: trabalho, socialização, cerimônias de oferendas etc.
“É muito interessante, porque é a mesma substância que está presente, só que em contextos diferentes”, ressalta Bruno, que cita ainda o uso farmacêutico da cocaína e o seu consumo na forma do crack. “A mesma substância, em contextos diferentes, vira outra coisa”.
E, se o contexto social já é indispensável para que alguma substância seja compreendida como droga, sua importância não é menor para pensarmos as práticas de cuidado com os usuários.
“É importante pensarmos nesses exemplos para desreificarmos o lugar da droga como ‘o mal’, ‘o motivo do fim da sociedade’, a ‘transformação de ‘homens em zumbis’, como se ela tivesse um maior poder de ação do que o próprio ser humano”, explica.
Tomemos, propõe Bruno, diferentes versões e diferentes contextos de uso de uma mesma substância, como a cocaína.
“Se você chegar para um cara que está cheirando uma carreira de cocaína e disser que ele está se drogando, ele não vai ter muito como negar”, exemplifica. “Mas, se você chegar para uma mulher andina que está mascando folhas de coca e disser que ela está se drogando, talvez ela fique meio brava com você”.
Para esta mulher, explica, mascar folhas de coca é um hábito ancestral, fundante de sua cultura, integrador da comunidade e usado para diversas atividades importantes: trabalho, socialização, cerimônias de oferendas etc.
“É muito interessante, porque é a mesma substância que está presente, só que em contextos diferentes”, ressalta Bruno, que cita ainda o uso farmacêutico da cocaína e o seu consumo na forma do crack. “A mesma substância, em contextos diferentes, vira outra coisa”.
E, se o contexto social já é indispensável para que alguma substância seja compreendida como droga, sua importância não é menor para pensarmos as práticas de cuidado com os usuários.
“É importante pensarmos nesses exemplos para desreificarmos o lugar da droga como ‘o mal’, ‘o motivo do fim da sociedade’, a ‘transformação de ‘homens em zumbis’, como se ela tivesse um maior poder de ação do que o próprio ser humano”, explica.
Propaganda de 1885, na qual pastilhas de cocaína são recomendadas para tratar a dor de dente de crianças.
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“A droga não existe fora de nós ou do contexto social, ela existe apenas dentro das nossas relações e depende do que nós fazemos com ela”.
O deslocamento de foco da substância para o contexto exige, ainda, um segundo deslocamento: da perspectiva própria à perspectiva do usuário. “É importante saber de onde o cara vem, o que ele faz. Isso faz parte da busca por compreender a cultura de uso: os sentidos que o uso tem para o sujeito, a valoração das formas de uso e as normas ali imbricadas”. “A base da redução de danos”, resume Bruno, “é o diálogo com o outro”. |
A REDUÇÃO DE DANOS
Apesar de o uso de substâncias capazes de promover estados alterados de consciência sempre ter existido, é só a partir de 1850, diz Bruno, que se começa a falar em “dependência”.
O tratamento, a princípio, é o internamento em hospital psiquiátrico, sendo que 70% dos internados na década de 1920 eram pessoas com problemas com álcool ou drogas. A partir da década de 1940, surgem os grupos de ajuda mútua e, trinta anos depois, as comunidades terapêuticas.
Em 1980, usuários de heroína de Roterdã, na Holanda, preocupados com a alta incidência de hepatite, organizam-se em um coletivo denominado “Junkie Bond” e reivindicam ao governo holandês a distribuição de seringas descartáveis. A solicitação é atendida, mas em contrapartida os governantes exigem que os usuários passem a se responsabilizar pelo recolhimento e descarte das seringas usadas, até então espalhadas pelo chão nos locais de uso.
“É interessante que temos dois danos ou problemas associados ao uso de drogas, um para o usuário e um para a comunidade: busca-se reduzir tanto o índice de hepatite entre os usuários quanto o de ‘perturbação urbana’ que eles trazem”, observa Bruno. “Essa ação foi bastante polêmica à época, mas rapidamente se mostrou muito efetiva: a transmissão da hepatite se reduziu bruscamente”.
Para a eficácia da estratégia, foi decisiva a participação dos próprios usuários na ação de cuidado. “São drogas de práticas de uso em espaços mais recolhidos, mas os próprios usuários sabiam onde estavam os outros usuários e conseguiram se aproximar dessa população de difícil acesso”.
A ação bem sucedida serviu ainda como oportunidade para que outras demandas dos usuários também fossem escutadas. “A partir dessa ação muito específica de distribuição de seringas foram surgindo outras ações de redução de danos. Aí ela deixa de ser uma estratégia e passa a ser uma forma de lidar com os problemas associados ao uso de drogas”.
Estratégias de cuidado que não têm a abstinência como pedra de toque são mais antigas. Ainda na década de 1960, diz Bruno, o governo do Reino Unido distribuía heroína a alguns usuários.
“Essa é uma estratégia de altíssima exigência: o cara precisa ser um usuário crônico, que já passou por diversos tratamentos, que já esteja trabalhando ou em vias de encontrar trabalho, lugar para morar etc. Ele vai passar por uma consulta com um médico que vai prescrever um pouquinho de heroína, suficiente para ele usar de manhã, à noite”.
Mas que tipo de redução de danos estaria em curso nesta ação?
“Basicamente, afastá-lo do mercado clandestino e, principalmente, estabilizar a vida da pessoa”, explica Bruno. “Se o cara usa um pouquinho de heroína de manhã e um pouco de noite, normalmente consegue levar uma vida normal: trabalhar, estudar. Mas se ele acorda de manhã e não tem heroína, não vai trabalhar nem estudar: ele vai atrás da heroína, porque a abstinência é muito sofrida”.
Outra experiência importante aconteceu em 1987, na Suíça, quando se instituiu um espaço público para o uso de heroína: o Parque das Agulhas. A relevância desta ação, contudo, e ao contrário da experiência holandesa, reside em seu insucesso.
“Imaginava-se que todos deixariam de usar em outros lugares e passariam a usar lá, onde seriam mais fáceis de acessar, se aproximar e de cuidar”, conta Bruno.
Ocorre que, em um ambiente tumultuado pela presença simultânea de agentes de segurança pública e traficantes, o diálogo e o cuidado com os usuários restava impossibilitado. Depois de três anos, diz o palestrante, a experiência foi considerada fracassada e salas de uso seguro foram instituídas.
“Isso é importante porque traz outro aspecto da redução de danos, que é o seu pragmatismo”, explica. “Não adianta falar que se está reduzindo danos, tem que ter impacto real na qualidade de vida das pessoas”.
O especialista trouxe, ainda, um exemplo canadense que questiona o debate polarizado entre redução de danos e internação. Trata-se de um espaço que abriga, ao mesmo tempo, uma sala de uso assistido e um espaço de internação.
“É interessante que a pessoa está sempre indo lá usar heroína. Se um dia decide que não quer usar, é só chegar para a pessoa da equipe – que ela conhece muito bem e que vê todo dia – e dizer que quer se tratar. Ela sobe a escada, fica duas semanas internada pra passar pela abstinência e depois segue o tratamento”.
Apesar de o uso de substâncias capazes de promover estados alterados de consciência sempre ter existido, é só a partir de 1850, diz Bruno, que se começa a falar em “dependência”.
O tratamento, a princípio, é o internamento em hospital psiquiátrico, sendo que 70% dos internados na década de 1920 eram pessoas com problemas com álcool ou drogas. A partir da década de 1940, surgem os grupos de ajuda mútua e, trinta anos depois, as comunidades terapêuticas.
Em 1980, usuários de heroína de Roterdã, na Holanda, preocupados com a alta incidência de hepatite, organizam-se em um coletivo denominado “Junkie Bond” e reivindicam ao governo holandês a distribuição de seringas descartáveis. A solicitação é atendida, mas em contrapartida os governantes exigem que os usuários passem a se responsabilizar pelo recolhimento e descarte das seringas usadas, até então espalhadas pelo chão nos locais de uso.
“É interessante que temos dois danos ou problemas associados ao uso de drogas, um para o usuário e um para a comunidade: busca-se reduzir tanto o índice de hepatite entre os usuários quanto o de ‘perturbação urbana’ que eles trazem”, observa Bruno. “Essa ação foi bastante polêmica à época, mas rapidamente se mostrou muito efetiva: a transmissão da hepatite se reduziu bruscamente”.
Para a eficácia da estratégia, foi decisiva a participação dos próprios usuários na ação de cuidado. “São drogas de práticas de uso em espaços mais recolhidos, mas os próprios usuários sabiam onde estavam os outros usuários e conseguiram se aproximar dessa população de difícil acesso”.
A ação bem sucedida serviu ainda como oportunidade para que outras demandas dos usuários também fossem escutadas. “A partir dessa ação muito específica de distribuição de seringas foram surgindo outras ações de redução de danos. Aí ela deixa de ser uma estratégia e passa a ser uma forma de lidar com os problemas associados ao uso de drogas”.
Estratégias de cuidado que não têm a abstinência como pedra de toque são mais antigas. Ainda na década de 1960, diz Bruno, o governo do Reino Unido distribuía heroína a alguns usuários.
“Essa é uma estratégia de altíssima exigência: o cara precisa ser um usuário crônico, que já passou por diversos tratamentos, que já esteja trabalhando ou em vias de encontrar trabalho, lugar para morar etc. Ele vai passar por uma consulta com um médico que vai prescrever um pouquinho de heroína, suficiente para ele usar de manhã, à noite”.
Mas que tipo de redução de danos estaria em curso nesta ação?
“Basicamente, afastá-lo do mercado clandestino e, principalmente, estabilizar a vida da pessoa”, explica Bruno. “Se o cara usa um pouquinho de heroína de manhã e um pouco de noite, normalmente consegue levar uma vida normal: trabalhar, estudar. Mas se ele acorda de manhã e não tem heroína, não vai trabalhar nem estudar: ele vai atrás da heroína, porque a abstinência é muito sofrida”.
Outra experiência importante aconteceu em 1987, na Suíça, quando se instituiu um espaço público para o uso de heroína: o Parque das Agulhas. A relevância desta ação, contudo, e ao contrário da experiência holandesa, reside em seu insucesso.
“Imaginava-se que todos deixariam de usar em outros lugares e passariam a usar lá, onde seriam mais fáceis de acessar, se aproximar e de cuidar”, conta Bruno.
Ocorre que, em um ambiente tumultuado pela presença simultânea de agentes de segurança pública e traficantes, o diálogo e o cuidado com os usuários restava impossibilitado. Depois de três anos, diz o palestrante, a experiência foi considerada fracassada e salas de uso seguro foram instituídas.
“Isso é importante porque traz outro aspecto da redução de danos, que é o seu pragmatismo”, explica. “Não adianta falar que se está reduzindo danos, tem que ter impacto real na qualidade de vida das pessoas”.
O especialista trouxe, ainda, um exemplo canadense que questiona o debate polarizado entre redução de danos e internação. Trata-se de um espaço que abriga, ao mesmo tempo, uma sala de uso assistido e um espaço de internação.
“É interessante que a pessoa está sempre indo lá usar heroína. Se um dia decide que não quer usar, é só chegar para a pessoa da equipe – que ela conhece muito bem e que vê todo dia – e dizer que quer se tratar. Ela sobe a escada, fica duas semanas internada pra passar pela abstinência e depois segue o tratamento”.
Também a polícia, na Holanda, foi responsável pelo desenvolvimento de uma ação de redução de danos.
Diante de um grande número de óbitos devidos ao uso de um certo tipo de cocaína, a polícia posicionou placas com os dizeres: "Cocaína extremamente perigosa é vendida para turistas". “As placas não falam que a droga mata, que vai destruir sua vida, mas alertam para a necessidade de tomar cuidado”. Estratégia policial eficaz, diz Bruno, sem a necessidade de “tiro, porrada e bomba”. |
Para o palestrante, todas estas experiências, diversas entre si, podem ser aglutinadas sob a perspectiva da “redução de danos” graças ao tripé: foco na qualidade de vida e redução de vulnerabilidade, comprovação pragmática da eficácia e construção dialogada.
“Para pensarmos se o que estamos fazendo está funcionando nessa perspectiva, devemos pensar se estamos focados na redução de vulnerabilidade e na melhoria da qualidade de vida e bem-estar, passando pela abstinência ou não”.
Melhoria de qualidade de vida e redução de vulnerabilidade que devem se mostrar efetivas, para além do discurso. “Se a ação está fazendo isso, então está sendo uma ação redutora de danos. Senão, não adianta chamá-la dessa forma porque não está cumprindo sua função”.
Quanto ao diálogo, Bruno ressalta que não se trata, aqui, da reedição do bordão do comércio, segundo o qual “o cliente sempre tem razão”.
“Você pode, diante de uma afirmativa de que “eu só me sinto bem fumando pedra”, perguntar: ‘será, mesmo?’. O objetivo e o lugar onde nós vamos chegar nascem de um diálogo.
“Para pensarmos se o que estamos fazendo está funcionando nessa perspectiva, devemos pensar se estamos focados na redução de vulnerabilidade e na melhoria da qualidade de vida e bem-estar, passando pela abstinência ou não”.
Melhoria de qualidade de vida e redução de vulnerabilidade que devem se mostrar efetivas, para além do discurso. “Se a ação está fazendo isso, então está sendo uma ação redutora de danos. Senão, não adianta chamá-la dessa forma porque não está cumprindo sua função”.
Quanto ao diálogo, Bruno ressalta que não se trata, aqui, da reedição do bordão do comércio, segundo o qual “o cliente sempre tem razão”.
“Você pode, diante de uma afirmativa de que “eu só me sinto bem fumando pedra”, perguntar: ‘será, mesmo?’. O objetivo e o lugar onde nós vamos chegar nascem de um diálogo.