Luiz Eduardo Soares:
“Não se pode discutir democracia no Brasil
fingindo que não há um massacre nas periferias”
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.16
BOLETIM INFORMATIVO N.16
Embora seja questão de vida ou morte para os setores mais vulneráveis da população e decisivo para a democratização da sociedade, o tema das polícias ainda é pouco presente no debate público no Brasil.
É a denúncia desta ausência que tem movido há anos o antropólogo Luiz Eduardo Soares, 63, e que foi a tônica de sua fala na Aula Magna promovida pelo CERP-SC durante o Módulo II do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”.
É a denúncia desta ausência que tem movido há anos o antropólogo Luiz Eduardo Soares, 63, e que foi a tônica de sua fala na Aula Magna promovida pelo CERP-SC durante o Módulo II do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”.
“Esse tema permanece negligenciado. São raríssimas as lideranças políticas que se debruçam sobre ele”, afirma, lembrando que mesmo os setores mais progressistas não dão a devida importância às polícias.
“No campo das esquerdas, isso é visto como epifenômeno, como consequência, já que o que importaria seriam as condições estruturais, econômicas e sociais. É verdade, só que nós nos esquecemos de que os aspectos mediadores, essas áreas sombrias, também merecem atenção e investimento de transformação”, diz. “E, se nós não nos preocuparmos com essas questões, eu lhes garanto que os setores mais retrógrados se preocuparão”. |
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CONTRATANDO VIOLÊNCIA FUTURA
Dos cerca de 60 mil homicídios dolosos ocorridos por ano no Brasil, Luiz Eduardo lembra que apenas 8% são investigados.
“Por investigados, quero dizer: eles são acolhidos pelo Ministério Público e considerados suficientemente instruídos a ponto de que se formule uma denúncia que passe a Justiça, dando início a um processo”, explica. Ou seja: 92% destes crimes permanecem inteiramente impunes.
Dos cerca de 60 mil homicídios dolosos ocorridos por ano no Brasil, Luiz Eduardo lembra que apenas 8% são investigados.
“Por investigados, quero dizer: eles são acolhidos pelo Ministério Público e considerados suficientemente instruídos a ponto de que se formule uma denúncia que passe a Justiça, dando início a um processo”, explica. Ou seja: 92% destes crimes permanecem inteiramente impunes.
Fonte: Infopen. Para acessar o relatório completo, clique aqui.
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“Daí, entretanto, não se deduz, como faz a mídia de forma precipitada e equivocada, que o Brasil seja o paraíso da impunidade”, ressalva.
“Ao contrário, aí começa o nosso paradoxo: nós temos a quarta maior população carcerária do mundo. E a que cresce em maior velocidade”. Para entender como é possível que a impunidade aos crimes letais conviva com a enormidade de nossa população carcerária, Soares propõe que nos debrucemos sobre esta população. “Ela é majoritariamente negra, jovem, pobre. Nós temos 12% cumprindo pena por homicídio doloso, dois terços por transgressões associadas à propriedade e crescentemente – e esse é o ponto decisivo – presos por transgressões associadas à lei de drogas, que hoje já são 28%”. |
Estes 28%, explica o antropólogo, são presos sem armas, sem ter praticado qualquer ato violento e não apresentam vinculações a organizações criminosas.
“Esses rapazes e moças que estão sendo presos não são aqueles bandidos que aparecem nas manchetes, com armas pesadas e se impondo tiranicamente sobre as comunidades”, diz. “São os aviõezinhos, os varejistas da droga, que tem nela uma estratégia de sobrevivência”.
Uma vez dentro das prisões, em sua grande maioria controlada pelas facções, a vinculação às organizações criminosas é inevitável.
“Vinculação que lhes cobrará a lealdade, subsequentemente, quando eles saírem da penitenciária”, lembra. “Portanto, mesmo não havendo vínculo anterior, este vínculo tem de se constituir por uma questão de sobrevivência e vai se estender para além do período da prisão”.
Deste modo, as prisões acabam por funcionar como um modo pelo qual a sociedade “contrata violência futura”. “O que significa dizer que nós estamos criando uma mina explosiva sobre os nossos próprios pés”.
VIOLÊNCIA E INEFICÁCIA
No caso da brutalidade letal do Estado, diz Soares, os números são também espantosos.
“No Rio de Janeiro, de 2003 até o fim de 2016, foram 12.623 mortes provocadas por ações policiais. Esse ano, há aproximadamente três casos de morte por intervenção policial por dia”, conta, lembrando que os assassinatos dos policiais fluminenses também têm batido recordes em 2017.
Mas quais são as causas que permitem que o sistema de segurança pública brasileiro seja ao mesmo tempo violento e ineficaz? A resposta de Luiz Eduardo Soares passa pela análise da atuação das polícias civil e militar.
“Nós temos a Polícia Militar, que está nas ruas vinte e quatro horas por dia em todo o país, que é a mais numerosa, que é a polícia ostensiva, preventiva, uniformizada” explica. “Ainda que seja a mais numerosa, ela é proibida de investigar – quem investiga é a Polícia Civil”.
Presentes nas ruas e encarregadas do policiamento preventivo, as polícias militares são pressionadas a realizar o maior número possível de prisões, o que é entendido como demonstração de produtividade. Mas como uma instituição proibida de investigar pode realizar prisões?
“Ora, se ela é instada a prender e não pode investigar, a conclusão é evidente: ela só pode prender em flagrante delito. E quais são os crimes passíveis de apreensão e identificação em flagrante? Aqueles que se dão aos sentidos: à visão, à audição”.
Deste modo, a aplicação da lei no Brasil é submetida a um crivo seletivo: ficam sob foco da ação pública não todos os crimes, mas apenas aqueles que são passíveis de identificação em flagrante.
“Qual é a ferramenta ideal, a mais útil, disponível e eficiente para a Polícia Militar, já que ela é pressionada a produzir, entende a produção como prisão e precisa fazê-lo em flagrante delito? A lei de drogas”, conta Soares.
CASAMENTO PERVERSO
Estabelece-se, assim, o que o antropólogo classifica como um “casamento perverso” entre modelo policial e lei de drogas, gerando a criminalização da pobreza e a explosão demográfica nos presídios e penitenciárias brasileiras.
“É um modelo policial perempto, inexistente em qualquer outro lugar do mundo, absolutamente inconsequente, que está articulado a uma lei que permite a ação em flagrante delito”, resume. “Eis como nós armamos essa máquina de morte e exploração”.
A discussão das mudanças na segurança pública brasileira, defende Soares, deve envolver necessariamente os dois cônjuges desta união estável: modelo policial e lei de drogas.
“Não é possível discutir mudanças na segurança pública sem pensar em uma revisão profunda da lei de drogas”, afirma. “Eu sou favorável à legalização das drogas, mas, mesmo que essa proposta não vencesse, nós já daríamos alguns passos se houvesse uma alteração liberalizante, mesmo que modesta”.
CRUZANDO OS BRAÇOS DIANTE DA TRAGÉDIA
Eis a dupla tragédia descrita pelo palestrante: homicídios dolosos em escalas escandalosas e o encarceramento em massa da juventude pobre e negra. “E nós somos capazes de cruzar os braços, como nação, diante desta dupla tragédia”.
Essa brutalidade, afirma, não é de responsabilidade exclusiva da polícia. “Há uma autorização por parte da sociedade para que os comandantes, as autoridades, os líderes políticos orientem as suas forças policiais numa certa direção”.
“O Ministério Público tem sistematicamente cruzado os braços, se mostrando cúmplice, ainda que tácito e indireto, do genocídio da nossa juventude negra e pobre nas periferias e favelas”, afirma. “O MP é constitucionalmente responsável pelo controle externo das atividades policiais, sem entretanto ser fiel a esse mandamento. E a Justiça cruza os braços e, portanto, tacitamente também abençoa esse estado de coisas”.
A desmontagem dessa “máquina de morte e exploração”, sustenta, é “decisiva para a democratização efetiva da sociedade brasileira”.
“Nós não vamos discutir democracia no Brasil fingindo que não há um massacre nas periferias, que as forças do Estado não estão atuando orientadas pelo grande Apartheid social e pelo racismo estrutural”.
Se o campo das esquerdas brasileiras ainda negligencia a importância da discussão sobre as polícias, o mesmo não acontece entre os setores mais vulneráveis da população. “Para eles”, resume Soares, “polícia é questão de vida ou morte”.
“Esses rapazes e moças que estão sendo presos não são aqueles bandidos que aparecem nas manchetes, com armas pesadas e se impondo tiranicamente sobre as comunidades”, diz. “São os aviõezinhos, os varejistas da droga, que tem nela uma estratégia de sobrevivência”.
Uma vez dentro das prisões, em sua grande maioria controlada pelas facções, a vinculação às organizações criminosas é inevitável.
“Vinculação que lhes cobrará a lealdade, subsequentemente, quando eles saírem da penitenciária”, lembra. “Portanto, mesmo não havendo vínculo anterior, este vínculo tem de se constituir por uma questão de sobrevivência e vai se estender para além do período da prisão”.
Deste modo, as prisões acabam por funcionar como um modo pelo qual a sociedade “contrata violência futura”. “O que significa dizer que nós estamos criando uma mina explosiva sobre os nossos próprios pés”.
VIOLÊNCIA E INEFICÁCIA
No caso da brutalidade letal do Estado, diz Soares, os números são também espantosos.
“No Rio de Janeiro, de 2003 até o fim de 2016, foram 12.623 mortes provocadas por ações policiais. Esse ano, há aproximadamente três casos de morte por intervenção policial por dia”, conta, lembrando que os assassinatos dos policiais fluminenses também têm batido recordes em 2017.
Mas quais são as causas que permitem que o sistema de segurança pública brasileiro seja ao mesmo tempo violento e ineficaz? A resposta de Luiz Eduardo Soares passa pela análise da atuação das polícias civil e militar.
“Nós temos a Polícia Militar, que está nas ruas vinte e quatro horas por dia em todo o país, que é a mais numerosa, que é a polícia ostensiva, preventiva, uniformizada” explica. “Ainda que seja a mais numerosa, ela é proibida de investigar – quem investiga é a Polícia Civil”.
Presentes nas ruas e encarregadas do policiamento preventivo, as polícias militares são pressionadas a realizar o maior número possível de prisões, o que é entendido como demonstração de produtividade. Mas como uma instituição proibida de investigar pode realizar prisões?
“Ora, se ela é instada a prender e não pode investigar, a conclusão é evidente: ela só pode prender em flagrante delito. E quais são os crimes passíveis de apreensão e identificação em flagrante? Aqueles que se dão aos sentidos: à visão, à audição”.
Deste modo, a aplicação da lei no Brasil é submetida a um crivo seletivo: ficam sob foco da ação pública não todos os crimes, mas apenas aqueles que são passíveis de identificação em flagrante.
“Qual é a ferramenta ideal, a mais útil, disponível e eficiente para a Polícia Militar, já que ela é pressionada a produzir, entende a produção como prisão e precisa fazê-lo em flagrante delito? A lei de drogas”, conta Soares.
CASAMENTO PERVERSO
Estabelece-se, assim, o que o antropólogo classifica como um “casamento perverso” entre modelo policial e lei de drogas, gerando a criminalização da pobreza e a explosão demográfica nos presídios e penitenciárias brasileiras.
“É um modelo policial perempto, inexistente em qualquer outro lugar do mundo, absolutamente inconsequente, que está articulado a uma lei que permite a ação em flagrante delito”, resume. “Eis como nós armamos essa máquina de morte e exploração”.
A discussão das mudanças na segurança pública brasileira, defende Soares, deve envolver necessariamente os dois cônjuges desta união estável: modelo policial e lei de drogas.
“Não é possível discutir mudanças na segurança pública sem pensar em uma revisão profunda da lei de drogas”, afirma. “Eu sou favorável à legalização das drogas, mas, mesmo que essa proposta não vencesse, nós já daríamos alguns passos se houvesse uma alteração liberalizante, mesmo que modesta”.
CRUZANDO OS BRAÇOS DIANTE DA TRAGÉDIA
Eis a dupla tragédia descrita pelo palestrante: homicídios dolosos em escalas escandalosas e o encarceramento em massa da juventude pobre e negra. “E nós somos capazes de cruzar os braços, como nação, diante desta dupla tragédia”.
Essa brutalidade, afirma, não é de responsabilidade exclusiva da polícia. “Há uma autorização por parte da sociedade para que os comandantes, as autoridades, os líderes políticos orientem as suas forças policiais numa certa direção”.
“O Ministério Público tem sistematicamente cruzado os braços, se mostrando cúmplice, ainda que tácito e indireto, do genocídio da nossa juventude negra e pobre nas periferias e favelas”, afirma. “O MP é constitucionalmente responsável pelo controle externo das atividades policiais, sem entretanto ser fiel a esse mandamento. E a Justiça cruza os braços e, portanto, tacitamente também abençoa esse estado de coisas”.
A desmontagem dessa “máquina de morte e exploração”, sustenta, é “decisiva para a democratização efetiva da sociedade brasileira”.
“Nós não vamos discutir democracia no Brasil fingindo que não há um massacre nas periferias, que as forças do Estado não estão atuando orientadas pelo grande Apartheid social e pelo racismo estrutural”.
Se o campo das esquerdas brasileiras ainda negligencia a importância da discussão sobre as polícias, o mesmo não acontece entre os setores mais vulneráveis da população. “Para eles”, resume Soares, “polícia é questão de vida ou morte”.