Lucienne Martins Borges: “Os refugiados que chegam ao
Brasil estão em situação de abandono"
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.20
BOLETIM INFORMATIVO N.20
Os refugiados que chegam ao Brasil estão em situação de abandono. Sem poder contar com serviços públicos adequados, dependem de redes de acolhimento formadas pelos próprios grupos de refugiados.
"Acolher não é abrir a porta e entregar o documento: acolhimento é tudo o que permite a permanência e a inserção da pessoa", explica a professora de psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Lucienne Martins Borges.
"Até pouco tempo atrás, percebíamos e participávamos com entusiasmo da forte mobilização em torno da nova lei de migração e da construção de reais políticas de acolhimento", conta. "Diante da conjuntura política atual, no entanto, arrefeceram-se os debates nesse sentido".
"Acolher não é abrir a porta e entregar o documento: acolhimento é tudo o que permite a permanência e a inserção da pessoa", explica a professora de psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Lucienne Martins Borges.
"Até pouco tempo atrás, percebíamos e participávamos com entusiasmo da forte mobilização em torno da nova lei de migração e da construção de reais políticas de acolhimento", conta. "Diante da conjuntura política atual, no entanto, arrefeceram-se os debates nesse sentido".
Coordenadora do NEMPsiC (Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas), Lucienne segue remando contra a maré política desfavorável.
"À contracorrente, seguimos trabalhando: em nossa clínica atendemos majoritariamente sírios, haitianos, colombianos e senegaleses. E preparamo-nos para receber venezuelanos em breve". Segundo o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o número de refugiados reconhecidos no país aumentou 12% em 2016, chegando a 9.552 pessoas de 82 nacionalidades. |
Assista aqui à aula completa de Lucienne Martins Borges.
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Síria (326), República Democrática do Congo (189), Paquistão (98), Palestina (57) e Angola (26) são os países com o maior número de refugiados reconhecidos no Brasil. Já as nações com maior número de solicitantes de refúgio, em 2016, foram Venezuela (3.375), Cuba (1.370), Angola (1.353), Haiti (646) e Síria (391).
Consideradas as cifras globais, a contribuição brasileira é modesta: só em 2015, mais de 65 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas. Mesmo se considerarmos os cerca de 85 mil haitianos que aqui permanecem com visto humanitário, o Brasil acolhe menos de 0,5% do total mundial de refugiados.
VIOLÊNCIA DE ESTADO
Consideradas as cifras globais, a contribuição brasileira é modesta: só em 2015, mais de 65 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas. Mesmo se considerarmos os cerca de 85 mil haitianos que aqui permanecem com visto humanitário, o Brasil acolhe menos de 0,5% do total mundial de refugiados.
VIOLÊNCIA DE ESTADO
Todo refugiado, explica Lucienne, é vítima de violência de Estado.
“Não existe refugiado que não seja vítima de violência de Estado. A condição para ser um refugiado é justamente esta: não ter, não poder ter ou não voltar a ter a proteção do Estado ao qual se pertence”. A partir do momento em que recebe o status de refugiado, a pessoa “passa a ser cidadã do mundo” e o dever de protegê-la deixa de recair apenas sobre um Estado específico. “As fronteiras são construções políticas. A pessoa refugiada passa a ter direito de proteção tanto do nosso Estado quanto de qualquer outro”. |
IMPACTOS DA MIGRAÇÃO
As migrações, relata Lucienne, provocam impactos importantes não apenas para o migrante, mas também para o local que ele deixou e, ainda, para a região à qual chegou.
“A migração resulta em mudanças importantes na vida da pessoa. Ela implica na ruptura do próprio sujeito com seu meio de origem, já que resulta na necessidade de se estabelecer de forma permanente no novo lugar”.
As consequências do deslocamento também são sensíveis nas regiões por eles deixadas.
“Se olharmos para a Síria, ela perdeu mais da metade da sua população. As primeiras pessoas a deixá-la, ainda antes que fosse declarada como ‘produtora de refugiados’, faziam parte de certa classe intelectual ou detentora de importante montante de recursos financeiros”, conta a professora. “O efeito disso para a posterior reconstrução do país é importante: o território está esvaziado de todos esses recursos”.
Finalmente, a migração traz efeitos para o lugar ao qual as pessoas chegam.
“Em Florianópolis, em 2015, a população local ficou fortemente impactada quando recebemos os ônibus com haitianos vindos do Acre. Eram dezenas de pessoas recém-chegadas, acolhidas de maneira improvisada em galpões e ginásios na entrada da cidade. Imaginem, então, um Estado recebendo milhões de pessoas! São impressionantes as fotografias que circularam da chegada de um milhão de refugiados na Alemanha”.
E esses, destaca a psicóloga, são apenas os primeiros impactos. “Mais profundos são os que surgem em longo prazo”.
MIGRAÇÕES VOLUNTÁRIAS E FORÇADAS
Pode-se falar, segundo a palestrante, de dois grandes grupos de imigrantes externos: os voluntários e os involuntários ou forçados.
A migração voluntária está relacionada, geralmente, a um projeto relacionado a fatores como estudo, trabalho ou relações afetivas.
“Quando olhamos para tais exemplos, percebemos que são programas de imigração em que aquele que parte para o exterior tem um projeto de vida, uma projeção no futuro e uma idealização desta nova vida”, resume Lucienne.
“O sujeito prepara, organiza, imagina, estabelece contatos, traduz diplomas, separa documentos, realiza despedidas, chora. Ele prepara a sua bagagem antes de partir”, exemplifica. “É incrível a mala de um imigrante: ela sempre carrega objetos que vão garantir certa continuidade no período inicial de chegada ao destino. O que um brasileiro leva? Um quilo de café, de feijão, de polvilho azedo”.
A psicanalista qualifica estes pertences transladados como “objetos transicionais” do imigrante.
“São como o ‘ursinho do bebê’, com o que ele vai de um lado para o outro, que tem um cheiro que traz segurança e permite a continuidade. Mais que isso, o imigrante voluntário carrega também uma ideia: seu país pode estar indo mal, mas está lá; sua família pode estar com dificuldades, mas segue lá. A noção de que ‘se não der certo, eu volto’ está sempre presente, a possibilidade do retorno existe”.
Bastante diferentes são as características da migração forçada. Estes migrantes buscam refúgio em razão, por exemplo, de perseguições políticas por parte de regimes autoritários, guerras, conflitos civis, catástrofes naturais, perseguições por gênero, religião ou raça.
“O que o leva ao deslocamento é uma forte humilhação, a experiência de uma guerra, situações de extrema violência: certamente perdas e rupturas graves”. E, além de não haver desejo de partir, tampouco existe, nestes casos, planejamento ou projeção.
“Se para uns foi possível programar a partida, no refúgio isso não existe”, diz Lucienne. “A pessoa não prepara a bagagem, não sai com ‘cheiro de ursinho’, não leva diploma, não pega documentos. Não traz consigo qualquer objeto que remeta a situação que estava antes inserida”.
Além disso, o regresso dessas pessoas ao seu local de origem é, segundo a especialista, praticamente impossível. “É um sujeito que, em geral, vive em uma posição de ‘fracasso’ por muito tempo. A integração, a inserção e adaptação ao novo meio de vida são bastante complexos”.
CULTURA E ACOLHIMENTO
Para Lucienne, todos os que trabalham com serviços de acolhimento de imigrantes devem compreender a importância da “função de proteção ou de contenção” do ambiente cultural.
“A vida cotidiana de todos nós é imbuída de rituais, que definem o modo como atuamos na sociedade: a hora de chegar e partir, a forma de cumprimentar, o que é permitido ou não etc. Partilhamos uma série de significados que orientam nossa vida em sociedade”, explica. “É por isso que não podemos dizer para nossos usuários: ‘você tem que entender que agora está aqui e que aqui as coisas funcionam desse jeito’. O processo de adaptação e inserção em outro contexto cultural pode levar muito tempo”.
Com funções protetora e mediadora, a cultura, continua a palestrante, evita a perplexidade e o medo, pois propicia ao sujeito imaginar situações e prever os efeitos de seu modo de agir. Proteção e mediação inexistentes para quem habita uma cultura que lhe é estrangeira.
“O refugiado se sente totalmente perdido ao não compreender a língua, os comportamentos, os documentos que deve preencher. É tomado por ansiedade. Na medida em que a ansiedade cresce, aumenta a desorganização e a imobilidade do sujeito”.
Sentindo-se perdidas em um contexto sociocultural desconhecido, estas pessoas podem viver momentos cruciais para sua integração ao entrarem em contato com equipamentos e órgãos públicos de saúde, assistência social, educação e Justiça.
“Quando essas pessoas se deparam com práticas de saúde, com formas de cuidado, podem viver momentos de desorganizações, que nos preocupam. Na saúde, vivem questões de vida e morte. Na Justiça, lidam com tudo o que legaliza ou não a sua condição no país. E, à escola, os pais entregam um filho com práticas culturais muito diferentes do que aquelas que são dominantes”, lembra. “O contato com essas instituições constitui, então, um risco diante dessa vulnerabilidade”.
É por este motivo que as práticas de resistência cultural, como os "bairros de imigrantes", podem ser entendidos antes como estratégias de manutenção de saúde do que como um problema a ser resolvido. “Quem já foi para São Paulo, nas regiões onde estão as populações chinesa ou japonesa, vê que entre eles há uma rede efetiva”.
Assim também devemos compreender o modo como o migrante, com muita frequência, constrói idealizações sobre o seu lugar de origem, contrapondo-as em tom crítico às características do ambiente cultural com as quais agora deve se haver.
“Um dia, uma baiana falou uma coisa que deixou uma pessoa daqui muito brava: que não existia farinha igual à da Bahia. O pessoal foi ficando irritado com a baiana, como se ela estivesse reclamando da farinha daqui. Eu não estava lá, senão teria dito que a melhor farinha é de Goiás", brinca Lucienne, fazendo alusão ao seu Estado natal. "Isso tudo é só estratégia de resistência e preservação de identidade. Não tem nada a ver com a farinha daqui: tem a ver é com a identidade, com algo que é dela”.
As migrações, relata Lucienne, provocam impactos importantes não apenas para o migrante, mas também para o local que ele deixou e, ainda, para a região à qual chegou.
“A migração resulta em mudanças importantes na vida da pessoa. Ela implica na ruptura do próprio sujeito com seu meio de origem, já que resulta na necessidade de se estabelecer de forma permanente no novo lugar”.
As consequências do deslocamento também são sensíveis nas regiões por eles deixadas.
“Se olharmos para a Síria, ela perdeu mais da metade da sua população. As primeiras pessoas a deixá-la, ainda antes que fosse declarada como ‘produtora de refugiados’, faziam parte de certa classe intelectual ou detentora de importante montante de recursos financeiros”, conta a professora. “O efeito disso para a posterior reconstrução do país é importante: o território está esvaziado de todos esses recursos”.
Finalmente, a migração traz efeitos para o lugar ao qual as pessoas chegam.
“Em Florianópolis, em 2015, a população local ficou fortemente impactada quando recebemos os ônibus com haitianos vindos do Acre. Eram dezenas de pessoas recém-chegadas, acolhidas de maneira improvisada em galpões e ginásios na entrada da cidade. Imaginem, então, um Estado recebendo milhões de pessoas! São impressionantes as fotografias que circularam da chegada de um milhão de refugiados na Alemanha”.
E esses, destaca a psicóloga, são apenas os primeiros impactos. “Mais profundos são os que surgem em longo prazo”.
MIGRAÇÕES VOLUNTÁRIAS E FORÇADAS
Pode-se falar, segundo a palestrante, de dois grandes grupos de imigrantes externos: os voluntários e os involuntários ou forçados.
A migração voluntária está relacionada, geralmente, a um projeto relacionado a fatores como estudo, trabalho ou relações afetivas.
“Quando olhamos para tais exemplos, percebemos que são programas de imigração em que aquele que parte para o exterior tem um projeto de vida, uma projeção no futuro e uma idealização desta nova vida”, resume Lucienne.
“O sujeito prepara, organiza, imagina, estabelece contatos, traduz diplomas, separa documentos, realiza despedidas, chora. Ele prepara a sua bagagem antes de partir”, exemplifica. “É incrível a mala de um imigrante: ela sempre carrega objetos que vão garantir certa continuidade no período inicial de chegada ao destino. O que um brasileiro leva? Um quilo de café, de feijão, de polvilho azedo”.
A psicanalista qualifica estes pertences transladados como “objetos transicionais” do imigrante.
“São como o ‘ursinho do bebê’, com o que ele vai de um lado para o outro, que tem um cheiro que traz segurança e permite a continuidade. Mais que isso, o imigrante voluntário carrega também uma ideia: seu país pode estar indo mal, mas está lá; sua família pode estar com dificuldades, mas segue lá. A noção de que ‘se não der certo, eu volto’ está sempre presente, a possibilidade do retorno existe”.
Bastante diferentes são as características da migração forçada. Estes migrantes buscam refúgio em razão, por exemplo, de perseguições políticas por parte de regimes autoritários, guerras, conflitos civis, catástrofes naturais, perseguições por gênero, religião ou raça.
“O que o leva ao deslocamento é uma forte humilhação, a experiência de uma guerra, situações de extrema violência: certamente perdas e rupturas graves”. E, além de não haver desejo de partir, tampouco existe, nestes casos, planejamento ou projeção.
“Se para uns foi possível programar a partida, no refúgio isso não existe”, diz Lucienne. “A pessoa não prepara a bagagem, não sai com ‘cheiro de ursinho’, não leva diploma, não pega documentos. Não traz consigo qualquer objeto que remeta a situação que estava antes inserida”.
Além disso, o regresso dessas pessoas ao seu local de origem é, segundo a especialista, praticamente impossível. “É um sujeito que, em geral, vive em uma posição de ‘fracasso’ por muito tempo. A integração, a inserção e adaptação ao novo meio de vida são bastante complexos”.
CULTURA E ACOLHIMENTO
Para Lucienne, todos os que trabalham com serviços de acolhimento de imigrantes devem compreender a importância da “função de proteção ou de contenção” do ambiente cultural.
“A vida cotidiana de todos nós é imbuída de rituais, que definem o modo como atuamos na sociedade: a hora de chegar e partir, a forma de cumprimentar, o que é permitido ou não etc. Partilhamos uma série de significados que orientam nossa vida em sociedade”, explica. “É por isso que não podemos dizer para nossos usuários: ‘você tem que entender que agora está aqui e que aqui as coisas funcionam desse jeito’. O processo de adaptação e inserção em outro contexto cultural pode levar muito tempo”.
Com funções protetora e mediadora, a cultura, continua a palestrante, evita a perplexidade e o medo, pois propicia ao sujeito imaginar situações e prever os efeitos de seu modo de agir. Proteção e mediação inexistentes para quem habita uma cultura que lhe é estrangeira.
“O refugiado se sente totalmente perdido ao não compreender a língua, os comportamentos, os documentos que deve preencher. É tomado por ansiedade. Na medida em que a ansiedade cresce, aumenta a desorganização e a imobilidade do sujeito”.
Sentindo-se perdidas em um contexto sociocultural desconhecido, estas pessoas podem viver momentos cruciais para sua integração ao entrarem em contato com equipamentos e órgãos públicos de saúde, assistência social, educação e Justiça.
“Quando essas pessoas se deparam com práticas de saúde, com formas de cuidado, podem viver momentos de desorganizações, que nos preocupam. Na saúde, vivem questões de vida e morte. Na Justiça, lidam com tudo o que legaliza ou não a sua condição no país. E, à escola, os pais entregam um filho com práticas culturais muito diferentes do que aquelas que são dominantes”, lembra. “O contato com essas instituições constitui, então, um risco diante dessa vulnerabilidade”.
É por este motivo que as práticas de resistência cultural, como os "bairros de imigrantes", podem ser entendidos antes como estratégias de manutenção de saúde do que como um problema a ser resolvido. “Quem já foi para São Paulo, nas regiões onde estão as populações chinesa ou japonesa, vê que entre eles há uma rede efetiva”.
Assim também devemos compreender o modo como o migrante, com muita frequência, constrói idealizações sobre o seu lugar de origem, contrapondo-as em tom crítico às características do ambiente cultural com as quais agora deve se haver.
“Um dia, uma baiana falou uma coisa que deixou uma pessoa daqui muito brava: que não existia farinha igual à da Bahia. O pessoal foi ficando irritado com a baiana, como se ela estivesse reclamando da farinha daqui. Eu não estava lá, senão teria dito que a melhor farinha é de Goiás", brinca Lucienne, fazendo alusão ao seu Estado natal. "Isso tudo é só estratégia de resistência e preservação de identidade. Não tem nada a ver com a farinha daqui: tem a ver é com a identidade, com algo que é dela”.