"O que significa ser branco, para você?"
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.4
BOLETIM INFORMATIVO N.4
O que significa ser branco, para você? Colocadas diante desta questão, pessoas brancas costumam demonstrar alguma surpresa e responder: "nunca havia pensado nisso antes".
Para a psicóloga social Lia Vainer Schucman – que ministrou a quarta aula do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?” –, a reflexão sobre os significados e privilégios da branquitude constitui condição fundamental para a desconstrução do racismo.
“No Brasil, nós aprendemos a ser racistas. Ao nascer aqui, se você não fizer um trabalho de desconstrução, você será racista”, afirmou Lia, que é autora do livro “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo” (Annablume, R$42), resultado de sua tese de doutoramento. Neste trabalho, em vez de analisar a categoria de raça estudando os alvos do racismo, a pesquisadora preferiu direcionar a sua pergunta aos brancos. |
Para assistir ao vídeo da aula de Lia Shucman, clique na imagem acima.
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“Quem estuda raça, no Brasil, em geral estuda negros e indígenas. A minha ideia é que, ao se estudar exclusivamente estes grupos, repõe-se a ideia de que brancos não têm raça”, diz. “Coloca-se o branco novamente neste lugar de quem representa a norma, a humanidade, enquanto os demais grupos são ‘desvios’, são ‘outros’”.
A pesquisadora exemplifica.
“Ninguém pergunta para um branco: ‘Ei, você: como branco, o que acha da política do [Geroge W.] Bush?’. Essa pergunta não faz sentido. No entanto, as pessoas perguntam: ‘Você, como negro, o que pensa do [Barack] Obama?’”, ilustra.
“Como se fosse natural, para o negro, ter que responder o que ele pensa do Obama. Ou seja: o branco é sempre um indivíduo, enquanto o negro é sempre chamado para responder pelo grupo, como um todo”.
RAÇA COMO CATEGORIA SOCIAL
Há décadas, diz Lia, que já se sabe falaciosa a tentativa de se fundamentar o conceito de raça em solos biológico ou cultural. Tanto ao investigar as características biológicas dos diferentes grupos racializados, quanto as suas características culturais, nada teria sido encontrado além de uma divisão rigorosamente arbitrária.
“A arbitrariedade dessa separação racial em três grupos, que surge no século XIX, é muito grande”, afirma. “Inicialmente, as raças foram separadas por grandes continentes: os negros seriam os africanos, os amarelos seriam os asiáticos e os brancos, os europeus. À época, asiáticos e indígenas foram considerados “amarelos”, ou seja, grupos completamente distintos foram considerados da mesma raça”.
Mas, então, por que continuar utilizando o conceito de raça?
Segundo Lia, porque embora baseado em uma ideia biológica falsa, a raça ainda é uma categoria social eficaz para manter o privilégio de uns e a opressão de outros. A psicóloga ilustra este fato com um exemplo que mostra como o preconceito racial, no Brasil, existe mesmo quando estão ausentes as diferenças de classe.
“Eu perguntei para um branco muito pobre, um mendigo, o que é ser branco para ele. Ele disse: ‘Eu posso entrar no shopping para cagar e meus colegas, não’. Ou seja: mesmo na extrema pobreza, a branquitude é um dispositivo de poder para esse sujeito.”
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Na década de 1950, um estudo encomendado pela Unesco e coordenado pelo sociólogo francês Roger Bastide procurou desvendar como o Brasil teria conseguido produzir com sucesso uma verdadeira democracia racial.
“Houve estudos em São Paulo, coordenados pelo sociólogo Florestan Fernandes, em Florianópolis, coordenados por Fernando Henrique Cardoso, na Bahia, no Rio Grande do Sul”, conta Lia. “Estes estudiosos tinham de responder para a Unesco por que os brasileiros vivíamos em uma harmonia racial. E foram muito bem pagos para isso”.
E qual foi o resultado?
“Não teve um dos pesquisadores que conseguiu responder que nós, de fato, vivíamos em uma harmonia racial. Ou seja: todos os estudos mostraram que existia um racismo muito forte”.
Ao final da experiência, Florestan Fernandes cunhou o termo “mito da democracia racial”: embora nunca tenha existido de fato, a suposta igualdade de oportunidades entre as diferentes raças nunca deixou, no Brasil, de existir enquanto mito.
A pesquisadora exemplifica.
“Ninguém pergunta para um branco: ‘Ei, você: como branco, o que acha da política do [Geroge W.] Bush?’. Essa pergunta não faz sentido. No entanto, as pessoas perguntam: ‘Você, como negro, o que pensa do [Barack] Obama?’”, ilustra.
“Como se fosse natural, para o negro, ter que responder o que ele pensa do Obama. Ou seja: o branco é sempre um indivíduo, enquanto o negro é sempre chamado para responder pelo grupo, como um todo”.
RAÇA COMO CATEGORIA SOCIAL
Há décadas, diz Lia, que já se sabe falaciosa a tentativa de se fundamentar o conceito de raça em solos biológico ou cultural. Tanto ao investigar as características biológicas dos diferentes grupos racializados, quanto as suas características culturais, nada teria sido encontrado além de uma divisão rigorosamente arbitrária.
“A arbitrariedade dessa separação racial em três grupos, que surge no século XIX, é muito grande”, afirma. “Inicialmente, as raças foram separadas por grandes continentes: os negros seriam os africanos, os amarelos seriam os asiáticos e os brancos, os europeus. À época, asiáticos e indígenas foram considerados “amarelos”, ou seja, grupos completamente distintos foram considerados da mesma raça”.
Mas, então, por que continuar utilizando o conceito de raça?
Segundo Lia, porque embora baseado em uma ideia biológica falsa, a raça ainda é uma categoria social eficaz para manter o privilégio de uns e a opressão de outros. A psicóloga ilustra este fato com um exemplo que mostra como o preconceito racial, no Brasil, existe mesmo quando estão ausentes as diferenças de classe.
“Eu perguntei para um branco muito pobre, um mendigo, o que é ser branco para ele. Ele disse: ‘Eu posso entrar no shopping para cagar e meus colegas, não’. Ou seja: mesmo na extrema pobreza, a branquitude é um dispositivo de poder para esse sujeito.”
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Na década de 1950, um estudo encomendado pela Unesco e coordenado pelo sociólogo francês Roger Bastide procurou desvendar como o Brasil teria conseguido produzir com sucesso uma verdadeira democracia racial.
“Houve estudos em São Paulo, coordenados pelo sociólogo Florestan Fernandes, em Florianópolis, coordenados por Fernando Henrique Cardoso, na Bahia, no Rio Grande do Sul”, conta Lia. “Estes estudiosos tinham de responder para a Unesco por que os brasileiros vivíamos em uma harmonia racial. E foram muito bem pagos para isso”.
E qual foi o resultado?
“Não teve um dos pesquisadores que conseguiu responder que nós, de fato, vivíamos em uma harmonia racial. Ou seja: todos os estudos mostraram que existia um racismo muito forte”.
Ao final da experiência, Florestan Fernandes cunhou o termo “mito da democracia racial”: embora nunca tenha existido de fato, a suposta igualdade de oportunidades entre as diferentes raças nunca deixou, no Brasil, de existir enquanto mito.
RACISMO DE INTIMIDADE E APARTHEID
“A gente aprendeu a ler o racismo com a lente norte-americana ou europeia, mas não aprendeu a ler o racismo brasileiro”, diz Lia. Para isso, nós teríamos de entender o racismo de intimidade “As pessoas dizem: ‘aqui, não é segregado. Todo mundo se mistura. Como pode haver racismo se brancos e negros são casados e têm filhos?’. Eu sempre respondo com uma analogia: você acha que não existe machismo porque os homens casam com mulheres? Não faz o menor sentido”. Mas a “intimidade” e a “mistura” entre brancos e negros, segundo Lia, vai só até a página dois. Para exemplificar, a professora mostrou uma foto de um bloco de carnaval na cidade de Salvador, na Bahia. |
Imagem aérea de bloco de carnaval na cidade de Salvador (BA).
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“As pessoas que conseguem pagar para estar dentro do bloco estão na parte do meio e as que não conseguem pagar, na parte de fora”. E conclui: “É um apartheid”.
SUPERANDO O RACISMO: O LETRAMENTO RACIAL
Para a antropóloga americana France Winddance Twine, os brancos podem se esforçar para não se apropriar da branquitude como lugar de poder e privilégio.
Em uma pesquisa com mais de 120 famílias inter-raciais, Twine concluiu que 70% delas reproduzem, em seu interior, a hierarquia existente na sociedade: os negros tenderiam a ter menos investimento familiar do que os brancos.
Mas o que ocorre nos outros 30%?
“Nestes, os brancos se reveem e se reconstroem”, explica Lia. “Eles não usam este lugar de poder. É o que ela vai chamar de letramento racial (racial literacy)”.
A palestrante destacou cinco pontos fundamentais para a superação desta espécie de “analfabetismo racial”. Em primeiro lugar, diz Lia, é necessário reconhecer o valor simbólico e material da branquitude.
“A fala ‘somos todos iguais’ não ajuda. Gostaríamos de ser todos iguais, mas não somos iguais no que diz respeito às desigualdades e privilégios da sociedade brasileira”, explica. “Esse reconhecimento é importante para os próximos passos”.
Em segundo lugar, Twine propõe que definamos o racismo como um problema social atual, e não como um acontecimento histórico perdido no passado.
“Em Florianópolis temos 20% de negros”, exemplifica Lia. “É a mesma quantidade que há nos EUA, não é pouco. Mas nós não vemos os negros de Florianópolis. Então nós devemos pensar como nós invisibilizamos essa população”.
Entender que as identidades raciais são aprendidas em nossas práticas sociais também seria fundamental para que aqueles que estão no lugar da branquitude sejam capazes de rever suas atitudes.
“É sempre uma construção e uma vigilância, que tem de ser diária”, diz Lia. “Eu estou achando que esse aluno aprende melhor porque ele é branco de olhos azuis? Eu atravessei a rua porque essa pessoa é negra?”, exemplifica. “É uma vigilância diária de desnaturalização do que aprendemos”.
Twine também defende a necessidade do uso de um vocabulário racial que facilite a discussão sobre o racismo. Trata-se, aqui, de abrir mão de eufemismos como “de cor”, “moreno” ou “moreninho”.
“Para produzirmos políticas públicas, a gente tem que aprender a falar ‘negros e brancos’ igual nós falamos ‘mulheres e homens’”, propõe Lia.
Por último, a antropóloga americana destaca a importância da capacidade de traduzirmos e interpretarmos os códigos e práticas racializadas de nossa sociedade. E esta tradução, afirma Lia, nem sempre é evidente.
“As mulheres negras são mais vítimas de violência”, exemplifica. “O crime é de violência doméstica, mas também há racismo, pois as negras são as que menos têm voz quando procuram ajuda, constituindo vítimas mais fáceis”, explica. “É sempre um conjunto de fatores que caminham juntos. A raça constrói, junto a outras categorias, violências diárias contra os negros”.
Não se produz fissuras no racismo, conclui a psicóloga, senão com uma “vigilância diária de desnaturalização do que aprendemos”.
“Este é um problema de todos nós. E, em qualquer lugar em que você estiver trabalhando, isso irá fazer parte da sua vida”.
SUPERANDO O RACISMO: O LETRAMENTO RACIAL
Para a antropóloga americana France Winddance Twine, os brancos podem se esforçar para não se apropriar da branquitude como lugar de poder e privilégio.
Em uma pesquisa com mais de 120 famílias inter-raciais, Twine concluiu que 70% delas reproduzem, em seu interior, a hierarquia existente na sociedade: os negros tenderiam a ter menos investimento familiar do que os brancos.
Mas o que ocorre nos outros 30%?
“Nestes, os brancos se reveem e se reconstroem”, explica Lia. “Eles não usam este lugar de poder. É o que ela vai chamar de letramento racial (racial literacy)”.
A palestrante destacou cinco pontos fundamentais para a superação desta espécie de “analfabetismo racial”. Em primeiro lugar, diz Lia, é necessário reconhecer o valor simbólico e material da branquitude.
“A fala ‘somos todos iguais’ não ajuda. Gostaríamos de ser todos iguais, mas não somos iguais no que diz respeito às desigualdades e privilégios da sociedade brasileira”, explica. “Esse reconhecimento é importante para os próximos passos”.
Em segundo lugar, Twine propõe que definamos o racismo como um problema social atual, e não como um acontecimento histórico perdido no passado.
“Em Florianópolis temos 20% de negros”, exemplifica Lia. “É a mesma quantidade que há nos EUA, não é pouco. Mas nós não vemos os negros de Florianópolis. Então nós devemos pensar como nós invisibilizamos essa população”.
Entender que as identidades raciais são aprendidas em nossas práticas sociais também seria fundamental para que aqueles que estão no lugar da branquitude sejam capazes de rever suas atitudes.
“É sempre uma construção e uma vigilância, que tem de ser diária”, diz Lia. “Eu estou achando que esse aluno aprende melhor porque ele é branco de olhos azuis? Eu atravessei a rua porque essa pessoa é negra?”, exemplifica. “É uma vigilância diária de desnaturalização do que aprendemos”.
Twine também defende a necessidade do uso de um vocabulário racial que facilite a discussão sobre o racismo. Trata-se, aqui, de abrir mão de eufemismos como “de cor”, “moreno” ou “moreninho”.
“Para produzirmos políticas públicas, a gente tem que aprender a falar ‘negros e brancos’ igual nós falamos ‘mulheres e homens’”, propõe Lia.
Por último, a antropóloga americana destaca a importância da capacidade de traduzirmos e interpretarmos os códigos e práticas racializadas de nossa sociedade. E esta tradução, afirma Lia, nem sempre é evidente.
“As mulheres negras são mais vítimas de violência”, exemplifica. “O crime é de violência doméstica, mas também há racismo, pois as negras são as que menos têm voz quando procuram ajuda, constituindo vítimas mais fáceis”, explica. “É sempre um conjunto de fatores que caminham juntos. A raça constrói, junto a outras categorias, violências diárias contra os negros”.
Não se produz fissuras no racismo, conclui a psicóloga, senão com uma “vigilância diária de desnaturalização do que aprendemos”.
“Este é um problema de todos nós. E, em qualquer lugar em que você estiver trabalhando, isso irá fazer parte da sua vida”.