“A violência de Estado fortalece as facções”, diz socióloga
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.14
BOLETIM INFORMATIVO N.14
A política de encarceramento em massa, as péssimas condições dos presídios brasileiros e a violência policial nas ruas não apenas não são estratégias eficazes no enfrentamento do crime, mas fortalecem as facções criminosas e retiram a legitimidade do Estado.
Em uma aula que lotou o Auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC, a socióloga e professora da Universidade Federal do ABC, Camila Nunes Dias, explicou de que modo a prisão funciona como locus de organização da criminalidade e contou a história da facção que controla o sistema prisional e o tráfico de drogas no Estado de São Paulo.
Camila é autora do livro “PCC - Hegemonia nas prisões e monopólio da violência” (Saraiva, R$138,50), fruto de sua Tese de Doutorado defendida na USP (disponível para download gratuito aqui).
A aula faz parte do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, cujo terceiro Módulo terá início no dia 15 de setembro (para maiores informações, bem como para realizar sua inscrição, clique aqui).
Em uma aula que lotou o Auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC, a socióloga e professora da Universidade Federal do ABC, Camila Nunes Dias, explicou de que modo a prisão funciona como locus de organização da criminalidade e contou a história da facção que controla o sistema prisional e o tráfico de drogas no Estado de São Paulo.
Camila é autora do livro “PCC - Hegemonia nas prisões e monopólio da violência” (Saraiva, R$138,50), fruto de sua Tese de Doutorado defendida na USP (disponível para download gratuito aqui).
A aula faz parte do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, cujo terceiro Módulo terá início no dia 15 de setembro (para maiores informações, bem como para realizar sua inscrição, clique aqui).
“Entre 1994 e 2013, o número de presos no Brasil cresceu exponencialmente”, conta Camila.
Com mais de 620 mil presos, o Brasil possui atualmente a 4ª maior população carcerária do mundo em números absolutos – ou a 6ª em números relativos entre os países com mais de 10 milhões de habitantes. Trata-se de um aumento de 167,32% em 14 anos: em 2000, eram 230 mil. Enquanto isso, as vagas no sistema prisional aumentaram de 136 mil para 372 mil, menos de 60% do número necessário. “A despeito da expansão do sistema carcerário, não foi possível acompanhar o crescimento ainda mais veloz e intenso do encarceramento”, diz a palestrante, enfatizando que a expansão física do sistema está longe de ser a solução. |
Assista aqui à aula completa.
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“A construção de mais prisões serve apenas para aumentar a possibilidade de encarceramento. Ela nunca, no Brasil, se transformou em melhores condições para os presos”, afirma. “Isso é uma falácia”.
Maior do que a desproporção do número de vagas é a de agentes penitenciários. Na teoria, são mais de 8 presos para cada agente. Mas a proporção de fato é outra. “Esse número oficial é uma mentira. Na prática, visitando os presídios, nós vemos que tem um funcionário para 300 ou 400 presos”.
Diante desses números, a socióloga coloca a questão: “Quem faz a gestão dos presídios com tamanha desproporção?”. Se o Estado é omisso e incapaz de fazer a gestão dos presídios, quem faz?
Maior do que a desproporção do número de vagas é a de agentes penitenciários. Na teoria, são mais de 8 presos para cada agente. Mas a proporção de fato é outra. “Esse número oficial é uma mentira. Na prática, visitando os presídios, nós vemos que tem um funcionário para 300 ou 400 presos”.
Diante desses números, a socióloga coloca a questão: “Quem faz a gestão dos presídios com tamanha desproporção?”. Se o Estado é omisso e incapaz de fazer a gestão dos presídios, quem faz?
Fonte: Infopen. Para acessar o relatório completo, clique aqui.
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A HISTÓRIA DO PCC
Foi em 1993, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, que surgiu o Primeiro Comando da Capital, o PCC. Conta-se que no dia 31 de agosto daquele ano dois homicídios ocorreram durante partida de futebol que opunha presos da capital a presos do interior do Estado. A partir daí, teria sido firmado entre eles um pacto de proteção mútua. Para Camila, este duplo homicídio, ainda que de fato tenha acontecido, serve ao PCC como uma espécie de “mito de origem”. “Ele tem um conteúdo simbólico muito forte. Mas as condições para a criação do grupo já estavam dadas”, diz. Para a socióloga, há três elementos centrais para entender o surgimento da facção, sendo o aumento das taxas de encarceramento o mais importante. |
“São Paulo tem 1/3 da população penitenciária nacional. A piora das prisões a partir desse aumento de encarceramento dá as condições necessárias para o PCC se expandir”, diz. “Pois aumentam as pressões por proteção, ordem, organização dos espaços. São as condições favoráveis para o crescimento de um grupo que surge com a bandeira de ‘lutar contra a opressão do Estado’”.
Camila destaca ainda que estavam reunidos em Taubaté presos com perfil diferente da população carcerária em geral, em especial os assaltantes de bancos. “Eram pessoas com capacidade de articulação, planejamento e oratória muito bem desenvolvida”.
Finalmente, é necessário compreender o contexto do sistema prisional e de segurança pública paulista à época.
“Era o governo [de Luiz Antônio] Fleury (PMDB), com uma escalada autoritária e de violência institucional”, lembra. “Foram várias as intervenções violentas dentro das prisões, para não falar fora”. No dia 2 de outubro de 1992, ocorreria o maior massacre da história do sistema prisional brasileiro, quando pelo menos 111 presos foram mortos na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.
"Já havia acontecido uma rebelião com 30 presos mortos. O massacre do Carandiru não é um evento isolado, é o ponto culminante de uma determinada política de segurança pública”, explica. “O surgimento do PCC, um ano depois, está diretamente ligado a isso. Ele é fruto também desta violência institucional”.
Esquematicamente, a história da facção pode ser dividida, segundo a socióloga, em três fases distintas.
PRIMEIRA FASE: CONQUISTANDO O ESPAÇO
Nesta primeira fase – marcada por rebeliões, fugas espetaculares, resgates e assassinatos de presos –, o PCC inicia o seu processo de conquista de territórios no Estado de São Paulo.
As rebeliões, que anteriormente eram decorrentes de demandas locais relativas à unidade rebelada, assumem outra configuração.
“Com a expansão do PCC, as rebeliões passam a ter outra dimensão, que às vezes não tem nada a ver com problemas locais da unidade. Elas passam a responder uma demanda sistêmica”, explica Camila. “Não é mais aquela rebelião em que o preso pede, por exemplo, para melhorar a comida ou outras condições locais. Eles passam a pedir a saída do diretor "x", a desativação de uma unidade etc”.
E não é sem violência que se desenvolve este processo de conquista de espaço e poder.
“Nessa primeira fase, o PCC se colocava como um novo centro de poder. Era como se dissesse: ‘a partir de agora, a gente que vai controlar aqui, vai dizer como é que tem que ser’”, diz a professora. “Evidentemente, nem todo mundo aceitava isso. E esses eram mortos de maneira espetacular: decapitados, jogavam bola com as cabeças. A morte tinha um sentido simbólico de afirmação e demonstração de poder”.
É também nessa fase de conquista, entre 1993 e 2001, que a facção institui o “batismo” de seus membros e cria o discurso de legitimação que sustenta até hoje.
“O discurso é o seguinte: ‘nós, população carcerária, somos oprimidos pelo Estado – principalmente por meio da polícia e do sistema carcerário –, não temos nossos direitos garantidos, sofremos violências e arbitrariedades por toda a nossa vida. E a gente tem que se unir, pois só unidos podemos fazer frente a este Estado que nos oprime’”.
Fazendo sempre questão de deixar claro que considera as facções um grave problema, e nunca algum tipo de solução, a professora destaca a centralidade da compreensão da importância deste discurso.
“Esse discurso tem um lastro na experiência dessas pessoas, ele tem onde se ancorar. Quem conhece as condições das prisões e a forma que a polícia atua em regiões pobres sabe que a relação dessa população com o Estado é uma relação de opressão. As pessoas falam: ‘poxa, é isso mesmo’", explica. "Isso precisa ser considerado para se entender a dimensão desse problema”.
Assim, longe de serem capazes de enfrentar as facções, a violência policial e a política de encarceramento em massa tendem a fortalecê-las. “Quanto mais se aposta na repressão, fortalece-se o discurso das facções e retira-se a legitimidade do próprio Estado”.
SEGUNDA FASE: CONSOLIDAÇÃO DO PODER
No dia 18 de fevereiro de 2001, 29 penitenciárias de todo o Estado de São Paulo iniciam de modo coordenado e simultâneo uma megarrebelião, a maior da história do país.
Até então negada pelo Governo paulista, a existência do PCC passa a ser um fato público inquestionável e nacionalmente conhecido.
“Foi uma desmoralização para o Governo estadual: eles disseram que o grupo não existia e, em seguida, 29 unidades se rebelaram simultaneamente, de forma sincronizada. Como é que pode?”.
Durante as rebeliões, os presos exibiam o símbolo 15.3.3. [número equivalente à ordem das letras PCC no alfabeto] e o lema da facção, “Paz, justiça e liberdade” - ao qual mais tarde seria adicionado o termo “igualdade”.
Após essa prova de poder, a expansão da facção dispara.
“Os presos narram que, a partir de 2001, por conta dessa demonstração de força, muitos presos quiseram se batizar”, diz Camila. “Houve uma expansão mais rápida a partir deste momento”.
Essa rápida expansão não se limitaria aos muros das penitenciárias. Em poucos anos, o PCC passaria do processo de consolidação à plena hegemonia em território paulista, ampliando seu poder das prisões para as ruas e controlando o tráfico de drogas em todo o Estado.
O marco histórico do início da hegemonia da facção não poderia ser mais trágico: tratam-se dos crimes de maio de 2006, quando em uma semana cerca de 500 pessoas são mortas. E não são os membros da facção, mas os agentes do próprio Estado, segundo a professora, os prováveis responsáveis pela grande maioria destes assassinatos.
“Em 2006, houve rebeliões em 74 unidades prisionais. Foram centenas de ataques às forças de segurança. Cerca de 80 agentes de segurança pública foram mortos”, conta. “E a reação da polícia foi de uma desproporção absurda: ao menos 430 civis mortos. Ao que tudo indica, os civis não foram mortos pelo PCC, mas pela polícia”.
TERCEIRA FASE: HEGEMONIA DENTRO E FORA DAS PRISÕES
Consolidada a hegemonia da facção – estima-se que entre 90% e 95% das penitenciárias paulistas são hoje controladas pelo 15.3.3 –, encerra-se a necessidade da promoção de atos de demonstração de poder e inicia-se o que a socióloga chama de “processo de racionalização do PCC”.
O número de assassinatos nas prisões é reduzido, as rebeliões são raras e as mortes espetacularizadas deixam de fazer parte do modus operandi da facção.
“Os homicídios no sistema carcerário paulista nos últimos anos são pouquíssimos, quase inexistentes”, conta. “E, quando ocorrem, têm uma nova forma, que eles chamavam de ‘gatorade’. Quando tinha de matar alguém, eles obrigavam a pessoa a ingerir uma mistura que provocava uma parada cardiorrespiratória”.
As armas brancas, que sempre foram muito comuns nas prisões, deixam de existir sob o controle da facção.
“Isso me surpreendeu muito. Todo mundo me falava: ‘na cadeia do PCC não tem mais faca’. Eu queria entender por quê. E a resposta era sempre a mesma: se é tudo PCC, se o preso não está pensando em tomar uma atitude por conta própria, não tem por que ter faca. Daí veio a minha ideia de interpretar isso como monopólio da violência”.
De modo análogo à descrição weberiana do monopólio da violência (“Gewaltmonopol”) como característica definidora dos Estados modernos, o PCC passa a ser a única instância de mediação e de regulação dos conflitos no interior da prisão, com a atribuição de julgar os culpados e definir suas penalidades.
“Qualquer tipo de conflito nas prisões em São Paulo tem a mediação do PCC. E na grande maioria das vezes prescinde-se da violência física como forma de resolução”, diz a professora. “Isso não quer dizer que não exista a violência, mas a violência física não é usada de forma indiscriminada”.
Inicialmente exercida por um único indivíduo, as instâncias de mediação de conflitos criadas pela facção adquirem posteriormente características de órgãos colegiados: são os chamados “debates”, espécie de tribunal no qual instâncias hierárquicas superiores devem dar o seu aval para a aplicação de eventuais punições.
“Nas primeiras fases do PCC, quem decidia, por exemplo, se ia matar ou não alguém na prisão, era o chamado ‘piloto’, a liderança local. A partir de 2003/2004, eles instituíram esse mecanismo chamado de ‘debate’”.
Também o crack some das cadeias neste período. “Eles diziam que nas prisões o crack provocava muitos conflitos e tornava difícil manter a ordem e a disciplina”.
Além disso, foi criado um sistema de gradação das punições, uma espécie de “código penal” que, segundo a pesquisadora, tem se tornado cada vez mais complexo. “O preso pode ser suspenso por um mês, excluído por 30, 90 ou 120 dias, pode ter que cumprir uma missão para ser reintegrado etc.”.
Camila destaca ainda que estavam reunidos em Taubaté presos com perfil diferente da população carcerária em geral, em especial os assaltantes de bancos. “Eram pessoas com capacidade de articulação, planejamento e oratória muito bem desenvolvida”.
Finalmente, é necessário compreender o contexto do sistema prisional e de segurança pública paulista à época.
“Era o governo [de Luiz Antônio] Fleury (PMDB), com uma escalada autoritária e de violência institucional”, lembra. “Foram várias as intervenções violentas dentro das prisões, para não falar fora”. No dia 2 de outubro de 1992, ocorreria o maior massacre da história do sistema prisional brasileiro, quando pelo menos 111 presos foram mortos na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.
"Já havia acontecido uma rebelião com 30 presos mortos. O massacre do Carandiru não é um evento isolado, é o ponto culminante de uma determinada política de segurança pública”, explica. “O surgimento do PCC, um ano depois, está diretamente ligado a isso. Ele é fruto também desta violência institucional”.
Esquematicamente, a história da facção pode ser dividida, segundo a socióloga, em três fases distintas.
PRIMEIRA FASE: CONQUISTANDO O ESPAÇO
Nesta primeira fase – marcada por rebeliões, fugas espetaculares, resgates e assassinatos de presos –, o PCC inicia o seu processo de conquista de territórios no Estado de São Paulo.
As rebeliões, que anteriormente eram decorrentes de demandas locais relativas à unidade rebelada, assumem outra configuração.
“Com a expansão do PCC, as rebeliões passam a ter outra dimensão, que às vezes não tem nada a ver com problemas locais da unidade. Elas passam a responder uma demanda sistêmica”, explica Camila. “Não é mais aquela rebelião em que o preso pede, por exemplo, para melhorar a comida ou outras condições locais. Eles passam a pedir a saída do diretor "x", a desativação de uma unidade etc”.
E não é sem violência que se desenvolve este processo de conquista de espaço e poder.
“Nessa primeira fase, o PCC se colocava como um novo centro de poder. Era como se dissesse: ‘a partir de agora, a gente que vai controlar aqui, vai dizer como é que tem que ser’”, diz a professora. “Evidentemente, nem todo mundo aceitava isso. E esses eram mortos de maneira espetacular: decapitados, jogavam bola com as cabeças. A morte tinha um sentido simbólico de afirmação e demonstração de poder”.
É também nessa fase de conquista, entre 1993 e 2001, que a facção institui o “batismo” de seus membros e cria o discurso de legitimação que sustenta até hoje.
“O discurso é o seguinte: ‘nós, população carcerária, somos oprimidos pelo Estado – principalmente por meio da polícia e do sistema carcerário –, não temos nossos direitos garantidos, sofremos violências e arbitrariedades por toda a nossa vida. E a gente tem que se unir, pois só unidos podemos fazer frente a este Estado que nos oprime’”.
Fazendo sempre questão de deixar claro que considera as facções um grave problema, e nunca algum tipo de solução, a professora destaca a centralidade da compreensão da importância deste discurso.
“Esse discurso tem um lastro na experiência dessas pessoas, ele tem onde se ancorar. Quem conhece as condições das prisões e a forma que a polícia atua em regiões pobres sabe que a relação dessa população com o Estado é uma relação de opressão. As pessoas falam: ‘poxa, é isso mesmo’", explica. "Isso precisa ser considerado para se entender a dimensão desse problema”.
Assim, longe de serem capazes de enfrentar as facções, a violência policial e a política de encarceramento em massa tendem a fortalecê-las. “Quanto mais se aposta na repressão, fortalece-se o discurso das facções e retira-se a legitimidade do próprio Estado”.
SEGUNDA FASE: CONSOLIDAÇÃO DO PODER
No dia 18 de fevereiro de 2001, 29 penitenciárias de todo o Estado de São Paulo iniciam de modo coordenado e simultâneo uma megarrebelião, a maior da história do país.
Até então negada pelo Governo paulista, a existência do PCC passa a ser um fato público inquestionável e nacionalmente conhecido.
“Foi uma desmoralização para o Governo estadual: eles disseram que o grupo não existia e, em seguida, 29 unidades se rebelaram simultaneamente, de forma sincronizada. Como é que pode?”.
Durante as rebeliões, os presos exibiam o símbolo 15.3.3. [número equivalente à ordem das letras PCC no alfabeto] e o lema da facção, “Paz, justiça e liberdade” - ao qual mais tarde seria adicionado o termo “igualdade”.
Após essa prova de poder, a expansão da facção dispara.
“Os presos narram que, a partir de 2001, por conta dessa demonstração de força, muitos presos quiseram se batizar”, diz Camila. “Houve uma expansão mais rápida a partir deste momento”.
Essa rápida expansão não se limitaria aos muros das penitenciárias. Em poucos anos, o PCC passaria do processo de consolidação à plena hegemonia em território paulista, ampliando seu poder das prisões para as ruas e controlando o tráfico de drogas em todo o Estado.
O marco histórico do início da hegemonia da facção não poderia ser mais trágico: tratam-se dos crimes de maio de 2006, quando em uma semana cerca de 500 pessoas são mortas. E não são os membros da facção, mas os agentes do próprio Estado, segundo a professora, os prováveis responsáveis pela grande maioria destes assassinatos.
“Em 2006, houve rebeliões em 74 unidades prisionais. Foram centenas de ataques às forças de segurança. Cerca de 80 agentes de segurança pública foram mortos”, conta. “E a reação da polícia foi de uma desproporção absurda: ao menos 430 civis mortos. Ao que tudo indica, os civis não foram mortos pelo PCC, mas pela polícia”.
TERCEIRA FASE: HEGEMONIA DENTRO E FORA DAS PRISÕES
Consolidada a hegemonia da facção – estima-se que entre 90% e 95% das penitenciárias paulistas são hoje controladas pelo 15.3.3 –, encerra-se a necessidade da promoção de atos de demonstração de poder e inicia-se o que a socióloga chama de “processo de racionalização do PCC”.
O número de assassinatos nas prisões é reduzido, as rebeliões são raras e as mortes espetacularizadas deixam de fazer parte do modus operandi da facção.
“Os homicídios no sistema carcerário paulista nos últimos anos são pouquíssimos, quase inexistentes”, conta. “E, quando ocorrem, têm uma nova forma, que eles chamavam de ‘gatorade’. Quando tinha de matar alguém, eles obrigavam a pessoa a ingerir uma mistura que provocava uma parada cardiorrespiratória”.
As armas brancas, que sempre foram muito comuns nas prisões, deixam de existir sob o controle da facção.
“Isso me surpreendeu muito. Todo mundo me falava: ‘na cadeia do PCC não tem mais faca’. Eu queria entender por quê. E a resposta era sempre a mesma: se é tudo PCC, se o preso não está pensando em tomar uma atitude por conta própria, não tem por que ter faca. Daí veio a minha ideia de interpretar isso como monopólio da violência”.
De modo análogo à descrição weberiana do monopólio da violência (“Gewaltmonopol”) como característica definidora dos Estados modernos, o PCC passa a ser a única instância de mediação e de regulação dos conflitos no interior da prisão, com a atribuição de julgar os culpados e definir suas penalidades.
“Qualquer tipo de conflito nas prisões em São Paulo tem a mediação do PCC. E na grande maioria das vezes prescinde-se da violência física como forma de resolução”, diz a professora. “Isso não quer dizer que não exista a violência, mas a violência física não é usada de forma indiscriminada”.
Inicialmente exercida por um único indivíduo, as instâncias de mediação de conflitos criadas pela facção adquirem posteriormente características de órgãos colegiados: são os chamados “debates”, espécie de tribunal no qual instâncias hierárquicas superiores devem dar o seu aval para a aplicação de eventuais punições.
“Nas primeiras fases do PCC, quem decidia, por exemplo, se ia matar ou não alguém na prisão, era o chamado ‘piloto’, a liderança local. A partir de 2003/2004, eles instituíram esse mecanismo chamado de ‘debate’”.
Também o crack some das cadeias neste período. “Eles diziam que nas prisões o crack provocava muitos conflitos e tornava difícil manter a ordem e a disciplina”.
Além disso, foi criado um sistema de gradação das punições, uma espécie de “código penal” que, segundo a pesquisadora, tem se tornado cada vez mais complexo. “O preso pode ser suspenso por um mês, excluído por 30, 90 ou 120 dias, pode ter que cumprir uma missão para ser reintegrado etc.”.
DA PIRÂMIDE À CÉLULA
Inicialmente, segundo a palestrante, o PCC possuía estrutura hierárquica piramidal: seus fundadores se autodenominavam “generais” e se referiam aos demais como “soldados”. A partir de 2002, a facção passa a se organizar de modo análogo ao chamado “modelo celular”. “Eles são divididos em células, que eles chamam de ‘sintonias’, divididas pelo código de DDD (011, 014, 015 etc.) das diferentes regiões de São Paulo. E, acima dessas células, tem a ‘Sintonia Geral Final’”. Camila não acredita, contudo, que a partir desta alteração estrutural deixe de existir uma hierarquia. “É um outro tipo de hierarquia, mas tem. As decisões são coletivas, mas não quer dizer que são igualitárias”. |
Estrutura de organização do PCC em 2011, segundo pesquisa de Camila Nunes Dias (Para acessar a Tese completa, clique aqui).
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A REDUÇÃO DE HOMICÍDIOS EM SP
Ao contrário do que ocorre em todos os outros Estados, São Paulo é o único cujos índices de homicídio vêm sendo reduzidos ano a ano, desde 2001. Segundo dados do Atlas da Violência de 2017, a taxa caiu de 21,9 (por 100 mil habitantes) para 12,2 – uma queda de 44,3%.
Para Camila, a lógica dessa redução ocorrida fora das prisões é similar ao processo que se deu no interior do sistema penitenciário. “A hegemonia que o PCC alcança em São Paulo, dentro e fora das prisões, tem um impacto muito forte nas taxas de homicídios”, analisa.
E não se trata de defender a facção. “É só uma questão de compreensão: se o PCC tem o controle do mercado de drogas, então a disputa desse mercado no varejo, que é algo que gera – historicamente, em todos os lugares – um índice de homicídio muito alto, deixa de existir”, explica.
Deste modo, a hegemonia do PCC criaria as condições para uma dinâmica criminal na qual os homicídios deixam de ter um papel central. “Se você tem um grupo só, que não tem concorrente, não tem disputas, que controla os territórios e exerce essa disciplina, você vai ter uma redução na taxa de homicídios”.
“Claro que há outros fatores: o Estatuto do Desarmamento, a atuação de ONGs na periferia, a criação do DHPP [divisão da Polícia Civil de SP responsável pela investigação dos homicídios]. Tudo isso pode ter o seu impacto”, reconhece. “Mas eu não vejo nenhum outro fator que possa explicar uma queda desse porte”.
VIOLÊNCIA DE ESTADO: ORIGEM DOS PROBLEMAS
Se é possível reconhecer que o fortalecimento das investigações e os investimentos sociais podem possuir algum papel na redução da violência, o mesmo não pode ser dito da atuação truculenta das polícias e da política de encarceramento em massa.
“A violência policial foi uma das causas do surgimento das facções, portanto ela não vai resolver esse problema”, afirma a professora, para quem o aumento das taxas de encarceramento também só serviu para consolidar as prisões como locus de organização da criminalidade.
“Hoje, se um preso furtou um carro, numa ação totalmente individual, ele vai ter uma oportunidade na prisão de se inserir em redes criminais muito mais complexas”, diz. “A prisão é a origem dos nossos problemas”.
Ao contrário do que ocorre em todos os outros Estados, São Paulo é o único cujos índices de homicídio vêm sendo reduzidos ano a ano, desde 2001. Segundo dados do Atlas da Violência de 2017, a taxa caiu de 21,9 (por 100 mil habitantes) para 12,2 – uma queda de 44,3%.
Para Camila, a lógica dessa redução ocorrida fora das prisões é similar ao processo que se deu no interior do sistema penitenciário. “A hegemonia que o PCC alcança em São Paulo, dentro e fora das prisões, tem um impacto muito forte nas taxas de homicídios”, analisa.
E não se trata de defender a facção. “É só uma questão de compreensão: se o PCC tem o controle do mercado de drogas, então a disputa desse mercado no varejo, que é algo que gera – historicamente, em todos os lugares – um índice de homicídio muito alto, deixa de existir”, explica.
Deste modo, a hegemonia do PCC criaria as condições para uma dinâmica criminal na qual os homicídios deixam de ter um papel central. “Se você tem um grupo só, que não tem concorrente, não tem disputas, que controla os territórios e exerce essa disciplina, você vai ter uma redução na taxa de homicídios”.
“Claro que há outros fatores: o Estatuto do Desarmamento, a atuação de ONGs na periferia, a criação do DHPP [divisão da Polícia Civil de SP responsável pela investigação dos homicídios]. Tudo isso pode ter o seu impacto”, reconhece. “Mas eu não vejo nenhum outro fator que possa explicar uma queda desse porte”.
VIOLÊNCIA DE ESTADO: ORIGEM DOS PROBLEMAS
Se é possível reconhecer que o fortalecimento das investigações e os investimentos sociais podem possuir algum papel na redução da violência, o mesmo não pode ser dito da atuação truculenta das polícias e da política de encarceramento em massa.
“A violência policial foi uma das causas do surgimento das facções, portanto ela não vai resolver esse problema”, afirma a professora, para quem o aumento das taxas de encarceramento também só serviu para consolidar as prisões como locus de organização da criminalidade.
“Hoje, se um preso furtou um carro, numa ação totalmente individual, ele vai ter uma oportunidade na prisão de se inserir em redes criminais muito mais complexas”, diz. “A prisão é a origem dos nossos problemas”.