Renata Almeida: “A psicanálise pode estar fora dos muros”
CENTRO DE ESTUDOS EM REPARAÇÃO PSÍQUICA DE SANTA CATARINA - CERP-SC
BOLETIM INFORMATIVO N.24
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Quando psicanalistas brasileiros foram à França para apresentar o projeto que desenvolviam em favelas do Rio de Janeiro, escutaram de seus colegas europeus: “Essa é uma experiência fadada ao fracasso. Porque onde a violência torce o pescoço das palavras, um psicanalista não pode trabalhar”.
A aposta da médica e psicanalista Renata Almeida, uma das responsáveis por um projeto similar ao dos cariocas – o da Casa dos Cata-Ventos, em Porto Alegre – pode ser descrita pelo oposto simétrico da frase dita pelos franceses.
“A gente vem tentando fazer exatamente o contrário: onde a violência está, a palavra tem de torcer o pescoço da violência”, explica. “A palavra tem de ajudar a fazer que algo deslize, que algo seja possível para além da descarga agressiva”. Trata-se, diz Renata, de uma aposta clínico-política em uma psicanálise capaz de atuar além dos muros do consultório. |
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“Quem já passou por uma análise sabe qual é a diferença de ter alguém que nos escute, que nos pontue coisas que façam um novo sentido na nossa vida”, lembra. “A gente aposta que isso é possível lá no meio da vila, não só nos consultórios. A psicanálise pode estar fora do muro, na vida diária das pessoas”.
A CASA DOS CATA-VENTOS
É na Vila São Pedro, comunidade pobre de Porto Alegre localizada ao lado do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que há seis anos funciona a Casa dos Cata-Ventos, fruto de uma parceria entre a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e o Instituto APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre).
“A Casa dos Cata-Ventos é um espaço, em uma vila, que se abre de tempos em tempos para receber as crianças. Para quê? Para brincar”, resume Renata. “Para tentar sustentar um espaço de infância para crianças que não têm espaço para brincadeira”.
Lugar para brincadeira que é também oportunidade de elaboração dos conflitos vividos – e muitas vezes silenciados – em um cotidiano marcado por experiências de violência e vulnerabilidade.
A CASA DOS CATA-VENTOS
É na Vila São Pedro, comunidade pobre de Porto Alegre localizada ao lado do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que há seis anos funciona a Casa dos Cata-Ventos, fruto de uma parceria entre a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e o Instituto APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre).
“A Casa dos Cata-Ventos é um espaço, em uma vila, que se abre de tempos em tempos para receber as crianças. Para quê? Para brincar”, resume Renata. “Para tentar sustentar um espaço de infância para crianças que não têm espaço para brincadeira”.
Lugar para brincadeira que é também oportunidade de elaboração dos conflitos vividos – e muitas vezes silenciados – em um cotidiano marcado por experiências de violência e vulnerabilidade.
Profissionais e crianças brincam de roda na Casa dos Cata-Ventos.
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“Por que é essencial para a criança poder brincar de polícia e ladrão? Ora, como é que uma criança de dois ou quatro anos vai poder dar conta dessa violência que ela vive?”, questiona.
“Existe nas comunidades um silenciamento frente à violência. Eles silenciam a violência que sofrem, seja porque a polícia volta mais violenta, seja porque o tráfico, que também é violento, está ali o dia todo”. A casa funciona ainda como um campo de formação, no qual estudantes, residentes e pós-graduandos da UFRGS se somam à equipe de psicanalistas do Instituto APPOA. “A casa é esse experimento aberto em que as questões que as crianças trazem fazem com que a equipe se repense”. |
A ESTRUTURA DOLTO
Uma das inspirações da Casa dos Cata-Ventos foi a Casa da Árvore, instituição que desenvolve projetos de atenção à infância no Rio de Janeiro. Esta, por sua vez, baseou-se no trabalho da Maison Verte (ou “Casa Verde”, em português), criada na França em 1979 por uma equipe liderada pela psicanalista Françoise Dolto [1908-1988].
“Françoise Dolto, que trabalhava com crianças, vai se dando conta de que tem um processo, uma passagem, que é sempre muito complicada, tanto para as crianças como para os pais: a passagem da casa para a escola”, conta Renata.
Uma das inspirações da Casa dos Cata-Ventos foi a Casa da Árvore, instituição que desenvolve projetos de atenção à infância no Rio de Janeiro. Esta, por sua vez, baseou-se no trabalho da Maison Verte (ou “Casa Verde”, em português), criada na França em 1979 por uma equipe liderada pela psicanalista Françoise Dolto [1908-1988].
“Françoise Dolto, que trabalhava com crianças, vai se dando conta de que tem um processo, uma passagem, que é sempre muito complicada, tanto para as crianças como para os pais: a passagem da casa para a escola”, conta Renata.
Para cuidar desta passagem, Dolto abre as portas da Maison Verte para que pais e crianças a frequentem quando quiserem, sem a necessidade de agendar o encontro ou de formular uma demanda.
Trata-se, segundo o site da instituição, de “um lugar de convívio e acolhimento, onde o laço social, tão necessário aos seres humanos, é reconhecido como essencial à saúde psíquica das crianças e de seus pais”. “Dolto dizia que era interessante ter um espaço, com brinquedos, onde essas pessoas vão brincar com seus bebês, conversar com outras mães, os bebês vão brincar entre si”, diz. “E os psicanalistas estão ali para intervir na vida diária de um bebê. Estão escutando algo que é dito, podendo fazer uma pontuação etc.” A este modelo de intervenção no cotidiano de pais e crianças deu-se o nome de “Estrutura Dolto”. |
Crianças brincam na Maison Verte, em Paris.
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“Quanto mais cedo a gente puder pontuar algo, melhor é para a criança. Hoje, nós já temos psicanalistas que intervêm no sofrimento de bebês em berçário. E intervêm como? Da única forma que ele sabe: falando”, conta Renata. “Se isso tem efeitos em um berçário, que dirá em uma criança que já circula, fala, escuta, que já está tentando dar conta das demandas, do que esperam dela”.
Durante as brincadeiras e contações de história, os psicanalistas podem “brindar a criança com uma palavra verdadeira”, permitindo-a sair da “dubiedade do não-dito”, típica dos segredos familiares.
“Quem trabalha com criança sabe que segredo familiar normalmente vira sintoma infantil. Freud já dizia: tudo o que a gente vive passivamente, nós tendemos a reproduzir ativamente. Se eu apanho do meu irmão mais velho, eu vou bater no meu irmão mais novo”, exemplifica. “A criança precisa dar conta disso e vai tentar encontrar uma resolução na atividade, fazendo exatamente a mesma coisa”.
Daí a necessidade de escutar o que, muitas vezes por meio de gestos e brincadeiras, a criança está falando. “Criança tem o que dizer”, sintetiza Renata. “E é necessário que a gente pare e escute”.
DE PARIS À VILA SÃO PEDRO
Durante as brincadeiras e contações de história, os psicanalistas podem “brindar a criança com uma palavra verdadeira”, permitindo-a sair da “dubiedade do não-dito”, típica dos segredos familiares.
“Quem trabalha com criança sabe que segredo familiar normalmente vira sintoma infantil. Freud já dizia: tudo o que a gente vive passivamente, nós tendemos a reproduzir ativamente. Se eu apanho do meu irmão mais velho, eu vou bater no meu irmão mais novo”, exemplifica. “A criança precisa dar conta disso e vai tentar encontrar uma resolução na atividade, fazendo exatamente a mesma coisa”.
Daí a necessidade de escutar o que, muitas vezes por meio de gestos e brincadeiras, a criança está falando. “Criança tem o que dizer”, sintetiza Renata. “E é necessário que a gente pare e escute”.
DE PARIS À VILA SÃO PEDRO
Da França ao Brasil, de Paris à Vila São Pedro em Porto Alegre, não são poucas as diferenças que devem observar os que buscam levar a psicanálise à cidade.
“Nós já tivemos momentos da casa ser destruída, das crianças quebrarem as coisas. Toda vez que isso acontece, que a violência irrompe com muita intensidade, a gente sabe que naquele momento algo está acontecendo na Vila São Pedro”. Ao longo de seis anos de trabalho, a equipe percebeu a ligação entre este tipo de comportamento das crianças e os momentos de recrudescimento da violência na comunidade. Segundo a psicanalista, isso acontece, por exemplo, “quando a violência da polícia está muito intensa, a polícia entrando à noite, arrombando a porta, fazendo as crianças tirarem a roupa para procurar droga”. |
Equipe de profissionais da Casa dos Cata-Ventos.
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Já em relação à passagem da casa à escola, os profissionais brasileiros têm de se haver com índices de evasão escolar muito mais elevados.
“Na França, as crianças são obrigadas a ir para a escola ali pelos três anos. Aqui no Brasil, a gente tem a obrigatoriedade de as crianças com quatro anos estarem já em escola infantil. Mas isso é uma balela, porque não existe creche nem escola infantil para todas as crianças, que ficam em casa sendo cuidadas por outras mulheres ou por seus irmãos mais velhos”, compara.
Para ajudar as crianças a chegarem na escola e a sustentarem o seu vínculo com o ambiente escolar, a equipe da Casa dos Cata-Ventos procura promover algumas incursões das crianças no universo do letramento.
“Hoje a gente vem tentando fazer da casa também um espaço que ajude as crianças a chegarem à escola já com algum conhecimento das letras. O que nós vimos na nossa comunidade é que essa passagem é importante de ser sustentada”.
Posteriormente, na transição da infância à adolescência, a sustentação da passagem inclui a abertura do universo de possibilidades das crianças da comunidade, muitas vezes extremamente restrito. “Se na passagem à adolescência aos meninos só sobra o tráfico, para as meninas sobra a maternidade. Elas são mães jovens porque isso faz delas mulher”.
"A gente acredita que nosso ato, além de clínico, é político. Porque, ao dar palavra e voz às crianças, estamos criando cidadania. Cidadania construída na infância possibilita às meninas outro destino além de ser mães jovens e, aos meninos, outro futuro que não o tráfico. Essa é a nossa aposta".
“Na França, as crianças são obrigadas a ir para a escola ali pelos três anos. Aqui no Brasil, a gente tem a obrigatoriedade de as crianças com quatro anos estarem já em escola infantil. Mas isso é uma balela, porque não existe creche nem escola infantil para todas as crianças, que ficam em casa sendo cuidadas por outras mulheres ou por seus irmãos mais velhos”, compara.
Para ajudar as crianças a chegarem na escola e a sustentarem o seu vínculo com o ambiente escolar, a equipe da Casa dos Cata-Ventos procura promover algumas incursões das crianças no universo do letramento.
“Hoje a gente vem tentando fazer da casa também um espaço que ajude as crianças a chegarem à escola já com algum conhecimento das letras. O que nós vimos na nossa comunidade é que essa passagem é importante de ser sustentada”.
Posteriormente, na transição da infância à adolescência, a sustentação da passagem inclui a abertura do universo de possibilidades das crianças da comunidade, muitas vezes extremamente restrito. “Se na passagem à adolescência aos meninos só sobra o tráfico, para as meninas sobra a maternidade. Elas são mães jovens porque isso faz delas mulher”.
"A gente acredita que nosso ato, além de clínico, é político. Porque, ao dar palavra e voz às crianças, estamos criando cidadania. Cidadania construída na infância possibilita às meninas outro destino além de ser mães jovens e, aos meninos, outro futuro que não o tráfico. Essa é a nossa aposta".